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Uma fábula sobre Animals do Pink Floyd

Entre porcos, cães e ovelhas, uma voz se levanta contra o silêncio

Capa do disco Animals do Pink Floyd
Imagem: Reprodução

A cidade não tem nome, apenas números. Torres infindáveis recortam um céu cinza permanente, enquanto drones zumbem entre ruínas e paredes invisíveis, registrando cada passo dos habitantes — ou melhor, dos animais. O concreto domina o horizonte, mas é nas linhas invisíveis, nas redes emaranhadas de dados e nos algoritmos que o verdadeiro controle se manifesta. Não há revolução dos bichos, apenas a manutenção da ordem: Porcos no topo, Cães como executores, Ovelhas anestesiadas. E, em algum ponto entre essas camadas, a humanidade dissolvida.



O mundo de Animals, inspirado em Orwell, se desdobra em nossa própria realidade. A extrema direita, que cresceu na sombra das torres digitais, encontrou sua forma de dominação: colonizando feeds, distorcendo símbolos, travestindo medo de liberdade. As redes sociais, que um dia prometeram dar voz a todos, tornaram-se pastos perfeitos para a polarização. Cada curtida é uma coleira, cada compartilhamento, um tijolo a mais na prisão que chamamos de discurso.


Anya, a figura dissonante que surge entre as ruínas revestidas de LED, não possui animal, não possui código — é um erro num sistema que não tolera brechas. Ela caminha pelas ruas enquanto anúncios políticos piscam em loop: “Você está seguro.” “Confie na Verdade.” Os rostos nas telas nunca envelhecem, apenas se adaptam ao humor da massa, moldando realidades conforme algoritmos definem quem deve temer, quem deve odiar, quem deve silenciar. No subterrâneo, mantras há muito esquecidos ressoam de volta, distorcidos: “O Senhor é meu pastor… ele sabe que estou perdido.”


O panóptico que Foucault teorizou é agora um feed infinito, onde ninguém sabe ao certo quem observa, mas todos se autocensuram. Os Cães, domesticados com promessas de poder, policiam pensamentos com cancelamentos seletivos, deepfakes e tribunais virtuais. Os Porcos governam de suas Altas Torres — não mais de concreto, mas de servidores — onde a verdade é manufaturada e reciclada como propaganda. E as Ovelhas, confortáveis em seus algoritmos personalizados, mastigam a ilusão de escolha enquanto marcham para o abate.



A distopia de Animals deixa de ser apenas um conceito musical para se tornar um reflexo perturbador da atualidade: um mundo onde a liberdade se vende em slogans e a obediência se disfarça de opinião própria. Onde o autoritarismo não precisa mais de tanques nas ruas, mas de telas brilhantes nas mãos. Onde a polarização não só divide, mas alimenta um sistema que prospera no caos e no medo.


Anya, com seu livro proibido encadernado em couro e ferrugem — um porco em pé na capa, como uma lembrança amarga de que a história sempre se repete — é a rachadura na estrutura. A pergunta que insiste em nascer: quem está escrevendo a história? Somos os arquitetos da nossa própria prisão ou apenas mais um tijolo na torre?



No fim, a cidade sem nome continua respirando seu ar denso de silêncio e aço. E enquanto as Torres do Vazio permanecem firmes, uma verdade incômoda se insinua entre as fendas: talvez o mais perigoso dos sistemas seja aquele em que todos acreditam estar livres.

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