A música tem esse poder: ela preenche o silêncio do mundo com a promessa de que, não importa o quão perdido você se sinta, existe beleza naquilo que você ainda não entende
Há discos que são como um abraço: inesperados, intensos, e repletos de significados. Rome, essa belezura ao vivo do The National, é um desses raros momentos em que a música parece traduzir os altos e baixos da vida. Gravado sem retoques, a honestidade crua desse registro conversa com tudo o que 2024 trouxe: mudanças abruptas, amores que floresceram e murcharam, e aquele estranho consolo que só encontramos em canções que nos compreendem mais do que palavras jamais conseguiriam.
A ideia desse texto não é fazer um review, mas, sim, uma conversa de botas batidas sobre uma das bandas preferidas desse que vos escreve e sobre as trivialidades desse fatídico ano, que vai chegando ao seu fim rasgado, desbotado e, mesmo assim, promoveu, de uma certa maneira, momentos ternos e de novas vivências e aprendizados.
Registrado na Cavea do Auditorium Parco della Musica Ennio Morricone, em Roma, durante o mês de junho, o álbum ao vivo reúne um setlist cuidadosamente selecionado, atende às expectativas dos fãs mais fervorosos, que aguardam ansiosamente pelo álbum de rock que a banda vem prometendo há anos.
Entre as 21 faixas, “New Order T-Shirt” é um destaque que pulsa como o coração de alguém que tenta se reconectar com pedaços perdidos de si mesmo. Ao vivo, a canção ganha um frescor que só o momento presente pode oferecer. A voz de Matt Berninger, quase um sussurro, nos leva para um lugar onde o cotidiano encontra a eternidade. A camiseta mencionada na letra, que carrega o cheiro e as lembranças de um amor, é um artefato tão simples e ao mesmo tempo tão poderoso. Assim como certas cidades em que vivemos, certas pessoas que conhecemos, ela se torna um ponto de ancoragem em um mundo em constante movimento.
Mas Rome é mais do que uma coleção de canções tocadas ao vivo. Ele é uma narrativa de nostalgia e renovação, com a cidade de Roma como pano de fundo e o público como cúmplice. A gravação nos faz sentir parte daquela noite — os ruídos da plateia, os momentos em que o vocal treme, a imperfeição que só um show ao vivo pode trazer.
“Bloodbuzz Ohio”, outro momento arrebatador do disco, é um lembrete visceral de tudo o que deixamos para trás. A batida marcante, quase como um coração acelerado, nos transporta para um estado de reflexão: o peso das dívidas emocionais, a saudade de um lugar que nunca realmente existiu da forma como lembramos, e a tentativa de se reconciliar com isso. Essa música, em particular, acaba se tornando um bálsamo em um ano em que tantos de nós mudamos de endereço, trocamos de vida ou nos reinventamos. Ohio pode ser um estado, mas aqui é também um estado de espírito — aquele onde o passado e o presente colidem em busca de um significado.
E há outros momentos que elevam o disco ao status de obra-prima ao vivo. “I Need My Girl” destila a fragilidade de querer alguém que parece estar sempre um passo além do alcance. “Lemonworld” brinca com os contrastes entre a simplicidade e o caos. E, “Lit Up”com sua energia quase festiva, nos relembra que ainda há espaço para celebrações, mesmo em tempos de incerteza.
Rome não é apenas sobre o The National em seu auge técnico. É sobre a vida, em toda a sua imperfeição. É sobre como pequenas memórias — uma camiseta, um cheiro, um olhar de despedida — podem carregar o peso de um ano inteiro. É sobre a beleza efêmera de uma noite em Roma que, graças à música, se torna eterna.
As diversidades da vida — os amores e desamores, as mudanças de cenário, as despedidas que não tiveram palavras suficientes — não são tão diferentes dos shows ao vivo. Cada momento é único, não pode ser repetido, mas carrega uma emoção que você jamais esquecerá. Talvez seja por isso que esse show seja tão poderoso: ele captura uma banda inteira se entregando à transitoriedade, assim como nós nos entregamos à música quando não temos mais nada para segurar.
Ouvir este disco, especialmente ao fim de 2024, é como revisitar o próprio ano: amores que marcaram como tatuagens invisíveis, desamores que nos ensinaram a soltar o que não era nosso, e a música que nos sustentou quando tudo o mais parecia frágil. E se há algo que aprendemos, seja com as mudanças de cidade ou com as oscilações da vida, é que sempre podemos encontrar refúgio no poder revigorante da arte.
Então, enquanto “Bloodbuzz Ohio” ecoa ao longe e “New Order T-Shirt” nos embala em sua intimidade, podemos olhar para trás e perceber que, mesmo entre as incertezas, este foi um ano de intensidades — algumas delas cheiram a amores antigos; outras carregam o suor das batalhas que vencemos sozinhos. Mas todas elas são nossas, um lembrete do que fomos, do que somos. Enquanto o último acorde ecoa, deixo “New Order T-Shirt” me lembrar de que, mesmo quando a vida muda o tempo todo, há algo profundamente humano e eterno em simplesmente continuar ouvindo. "Vanderlyle Crybaby Geeks", aponta, no headphone, possibilidades.
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