A certeza ao entrar nesse universo é que o vazio pode assumir várias formas, das quais muitas vezes não podemos escapar
Cutouts, segundo álbum lançado este ano pelo The Smile, projeto paralelo do Radiohead, que, se bem, nem é tão mais paralelo assim, Thom Yorke e Jonny Greenwood, ao lado do baterista Tom Skinner, estão cada vez mais se aprofundando nas raízes do jazz, explorando uma sonoridade experimental e reflexiva.
As canções de Cutouts foram gravadas na mesma sessão do excelente Wall of Eyes, lançado em janeiro deste ano. A qualidade sonora não decaiu nem sequer um milésimo; o trio inglês parece ter encontrado uma liberdade, um refúgio para produzir e fazer música. O novo trabalho é recheado de presságios, com a bateria de Skinner trazendo o elemento surpresa e contagiante. A certeza que fica ao adentrar nesse universo e atmosfera propostos pela banda é de que o vazio pode ser convertido em várias formas, e muitas vezes, não podemos escapar dele.
As letras de Yorke estão cada vez mais pontiagudas, certeiras e honestas, derramando aquele balde de verdades nuas e cruas na alma. Em boa parte, Yorke é irônico e lúdico, jogando suas metáforas sobre a vida nesses tempos de modernidade e tecnologias.
Os instantes iniciais da hipnótica e sedutora “Instant Psalm” provam por que o The Smile vem se tornando uma das grandes revelações dos últimos anos e, cada vez mais, brilhante e expansivo com suas complexidades sonoras, com as quais eles parecem se divertir à beça. “Zero Sum”, com as guitarras robóticas e espaciais de Jonny Greenwood, misturadas com saxofones e aquela genuinidade poderosa do jazz, faz da canção uma fusão de sonoridades e experimentalismo.
E uma coisa que o The Smile sabe fazer com tamanha perfeição é brincar com imaginação e curiosidade do ouvinte, isso fica evidente com a abertura singela, calma e nostálgica com a faixa “Foreign Spies”, que age como um condutor preparatório do que vai vir pela frente, tocando os sintetizadores como sinos que florescem em torno da voz bucólica e sombria de Yorke. A faixa desagua nessa corrente experimentalista e caba se tornando uma viagem cercada de folhas e paisagens. O aviso foi entregue, agora é aproveitar a viagem psicodélica de aproximadamente 44 minutos, onde você vai se sentir fora da realidade, distante do mundo e todos os barulhos da vida urbana.
Em “Eyes & Mouth”, Greenwood parece fazer da guitarra um brinquedo divertido e prazeroso. A canção logo salta para um ritmo frenético e deslumbrante, impulsionada pelas batidas rápidas de Skinner, sempre com aquela pegada jazzística. “Tiptoe” é embasada por pianos, sussurros e cordas, uma faixa que explora mais a música ambiente e lembra muito os trabalhos de Yorke e Jonny em trilhas sonoras de filmes.
“The Slip” traz toda aquela ambientação repleta de paranoia típica do mundo de Yorke. A faixa, mais lúdica do disco, logo entrega rajadas de guitarras que emanam David Bowie. Esse é o fascínio de colocar os ouvidos em um disco do The Smile: você nunca sabe o que vai encontrar até o final do álbum. Cutouts é bem mais expansivo e surpreendente do que seu irmão Wall of Eyes. É extraordinário que dois álbuns tenham nascido das mesmas sessões.
E esses recortes assim como sugere o título parecem belos demais para serem considerados sobras de estúdio, assim como aconteceu com Kid A e Amnesiac do Radiohead, um trabalho bom demais para ser deixado na sala de edição ou gavetas de estúdios. Tudo isso gera um efeito de épocas distintas: canções trazidas de volta à vida e moldadas para viverem juntas no presente, sem que cada elemento tenha um motivo claro para estar ao lado do outro, exceto o puro prazer de fazer música e conectar pessoas.
Este é um trabalho verdadeiramente encantador, repleto de sons bonitos e exuberantes, onde o processo criativo exalta os grooves envolventes, criando uma atmosfera vibrante e etérea. Em um cenário musical cada vez mais homogêneo, Cutouts se destaca como um farol de criatividade e inovação, convidando novos ouvintes a explorar não apenas a música do The Smile, mas também a rica discografia do Radiohead. Este álbum não é apenas uma coleção de canções, mas uma experiência que desafia as normas contemporâneas, mostrando que ainda há espaço para a ousadia e a experimentação na música atual.
E quem realmente precisa de um retorno do Radiohead quando se tem o The Smile? Brincadeiras à parte, isso aqui está se tornando cada vez mais exaltante, complexo, inventivo e criativo. Um bálsamo para quem realmente aprecia música de qualidade.
Cutouts
The Smile
Ano: 2024
Gênero: Indie Rock, Alternativo, Jazz
Ouça: "Instant Psalm", “Eyes & Mouth”, “Zero Sum”
Pra quem curte: Memory Map, Acid Mothers Temple
Humor: Provocante, Enigmático, Complexo
Discasso!!!