Em seu último álbum de inéditas, Dylan percorre pelos caminhos da suntuosidade e nos entrega uma obra sinfônica com o melhor de toda sua trajetória pelo universo da música Folk, Rock, Gospel e Blues. Um dos músicos mais importantes do século XX, sua obra perpetua-se como a personificação dos grandes e marcantes acontecimentos do mundo. Suas letras poéticas e líricas, certeiras lá naquele ponto exato da alma e do coração. Um verdadeiro trovador solitário que carrega em sua música a dor não somente sua, mas de toda uma multidão que batalha dia após dia, na esperança de dias melhores.
Esse é o poder de sua obra, nunca vamos compreende-la de verdade, é complexa e passaríamos horas, dias ou até mesmo meses tentando desvendar os segredos por trás das letras ou de cada frase dita por ele. Esse é o impacto que esse sujeito consegue causar com toda sua importância para humanidade. Desperta inúmeras sensações, emoções e desejos.
No auge dos seus 79 anos, Dylan consegue canalizar como ninguém os mistérios do universo norte-americano. Um poeta, músico e, acima de tudo, humano. Domina o seu próprio tempo e aparece quando bem entende, dando um soco na “boca do estômago”, abordando uma série de eventos que rodeiam o mundo: quarentena, pandemia, mortes, inseguranças, incertezas, medos, cidades em chamas, movimento revolucionário nas ruas... e perante esse turbilhão de acontecimentos que o velho poeta surge com uma obra de clássicos incondicionais.
Falo de 'Rough and Rowdy Ways', seu primeiro álbum de inéditas após longos oito anos lapidando e absorvendo a espiritualidade da humanidade para canaliza-la em um conjunto de canções que só o próprio Dylan teria a capacidade de conceder e compor com grande maestria. O álbum capta o melhor de sua jornada como se lapidasse discos como 'Tempest', 'Oh Mercy', mergulhando no autentico e profundo 'Blood On The Tracks', traçando uma viagem através de uma linha do tempo, vivenciando memórias, experiência e a arte de envelhecer.
A abertura é com a notável “I Contain Multitudes”, entregando aquela voz inconfundível que tem o dom de te deixar em silencio por minutos viajando em pensamentos. A canção soa tão presente em nossa realidade que em questão de minutos consegue nos trazer momentos de tranquilidade guiados por seu ritmo lento e vigoroso na voz de quem sabe fazer e tem o tempo ao seu favor. “Hoje, amanhã e ontem/ As flores estão morrendo como todas as coisas… Eu contenho Multidões”. É, Dylan, você realmente sabe conter multidões com seu canto!
Esse é apenas o pontapé inicial de uma viagem pelo processo criativo vindo da cabeça de quem viveu e presenciou muitas coisas pelas estradas da vida. Em “False Prophet” – para quem estava um pouco com o pé atrás em relação ao disco -, aqui se desconstrói essa ideia. A canção é a representação do melhor que o artista sabe fazer. Um Blues dos bons, com a voz de Dylan emergindo como ondas no mar, e solos de guitarras com sua marca de sempre. Ele se denomina como um falso profeta do tempo que sabe dizer perfeitamente aquilo que permeia nossas mentes:” “Outro dia que não acaba/ Outro navio partindo/ Outro dia de raiva, amargura e dúvida/ Eu sei como aconteceu/ Eu vi o começo disso”. Uma canção que sintetiza os sentimentos de dias sombrios que martelam nossa mente dia, após dia.
Mas se engana quem achar que a proposta do álbum é entregar singelas palavras de conforto, nada disso, Dylan como um trovador solitário que é, faz uma narrativa a sangue frio de contos que traduzem com exatidão a verdadeira doença que assola o mundo. É o seu jeito de dizer que as coisas vão muito errado por aqui
Após algumas audições, o álbum vai ganhando proporções e construções variadas, analisando seu contexto como um todo, é possível perceber a essência do Blues que vem lá das terras de Chicago, o entusiasmo e emoção absorvida da cidade de Nashville, capital do estado de Tennessee, nos EUA, onde acontece os lendários eventos da música country. É possível captar essa mistura excêntrica na empolgante e envolvente “Goodbye Jimmy Reed”, que traz elementos característicos da música de Dylan, Blues, Folk e gaitas na moda antiga, e a velha voz rouca inconfundível e incomparável do cantor.
'Rough and Rowdy Ways' é elegância pura. Apresenta um Dylan flexível, minucioso que vai se revelando a cada canção e, ele é mestre em criar músicas no seu estilo, é o caso da balada, “Mother of Museus”, canção que faz menção a Sherman, Montgomery, Elvis Presley e Martin Luther King. Histórias de homens que revolucionaram o mundo e que apenas um contador nato consegue narrar com tamanha poesia: “Que lutaram com a dor para que o mundo fosse livre… Que fizeram o que fizeram e foram embora/ Cara, eu poderia contar a história deles o dia inteiro”, diz a letra.
As duas últimas canções que fecham o disco, “Key West (Philosopher Pirate)” e “Murder Most Foul”, sem sombra de dúvidas são o ponto alto do disco, a chave para captar a essência e o contexto da obra, e compreender sua proposta para esses dias conturbados e ao mesmo tempo errados. Não poderia ter um desfecho melhor que esse. Dylan explora espaço e tempo como ninguém e ainda aponta a direção para o futuro.
Bob Dylan
Rough And Rowdy Ways
Lançamento:19 de junho de 2020
Gênero: Rock, Country Rock e Folk Rock
Ouça: "I Contain Multitudes", "False Prophet" e "Murder Most Foul"
NOTA DO CRÍTICO: 9,5
Spotify:
Veja o vídeo de "False Prophet" abaixo:
Marcello Almeida
É editor e criador do Teoria Cultural.
Pai da Gabriela, Técnico em Radiologia, flamenguista, amante de filmes de terror, adora bandas como: Radiohead, Teenage Fanclub e Jesus And Mary Chain. Nas horas vagas, gosta de divagar histórias sobre: música, cinema e literatura. marce.almeidasilvaa@gmail.com
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