A direção de Guadagnino é, como sempre, impecável
Ao adentrar nas entranhas de Queer, novo longa de Luca Guadagnino, é notável a paixão e devoção que o cineasta carrega em seu íntimo pelo emblemático romance do século XX, de William S. Burroughs. Guadagnino adapta essa obra de maneira fidedigna, com uma reprodução de época impressionante. O diretor, conhecido por Me Chame Pelo Seu Nome e Suspiria, nos convida a embarcar em uma narrativa através de uma paixão avassaladora e visceral por uma obra que ele sempre carregou consigo desde seus tempos de juventude. O romance, escrito nos anos 50, mas publicado somente nos anos 80, é autobiográfico e não poderia ser mais adequado para um cineasta que, como Burroughs, mistura o real e o surreal de forma magistral.
Aqui, a história gira em torno de Lee (Daniel Craig), um expatriado americano vivendo no México nos anos 50, afogado na solidão, nas drogas e na busca incessante por um significado que parece sempre escapar. Lee, que caminha por entre tequila e heroína, se vê envolvido em uma obsessão por Eugene (Drew Starkey), um jovem enigmático que desperta nele a possibilidade de uma conexão real, algo que ele nem sabia mais que poderia existir. O que começa como uma paixão rapidamente se transforma em um jogo de sedução, dominação e conquista, onde Lee tenta de tudo para prender Eugene a sua vida.
A atuação de Daniel Craig aqui é uma das mais surpreendentes e audaciosas da sua carreira. Conhecido por seu trabalho como James Bond, Craig desconstrói essa persona de macho alfa ao interpretar Lee, um personagem que é, ao mesmo tempo, vulnerável e dominador, com gestos grandes, uma fala imponente e uma presença que ocupa o espaço. Há algo de ultramasculino em Lee, que transborda energia e problemas, mas a complexidade do personagem vai além da superfície. Craig mergulha nas especificidades desse homem machucado, sem medo de explorar sua fragilidade, algo que quebra totalmente sua imagem pública construída ao longo de anos.
Ao lado de Daniel, Drew Starkey entrega uma performance notável como Eugene. O ator, que muitos conhecem de Outer Banks, surpreende ao se mostrar contido, enigmático e profundamente introspectivo. Eugene é o oposto de Lee: silencioso, comedido, alguém que parece sempre fora do alcance do protagonista, criando uma dinâmica de amor dessincronizado, como Craig mesmo descreve. Os dois se amam, mas em frequências diferentes, e isso se torna uma das maiores tragédias da trama. O momento em que ambos finalmente se conectam ocorre em uma cena que mistura a psicodelia da Ayahuasca*, onde o filme transita para uma experiência quase visual, sem palavras, que parece ser a única vez em que Lee e Eugene vibram na mesma sintonia.
A direção de Guadagnino é, como sempre, impecável. Ele cria uma atmosfera densa e intensa, algo que vai além do que é mostrado na tela. Os cenários, as paredes, a luz, a maneira como a câmera se movimenta – tudo isso ajuda a construir uma narrativa visualmente rica e emocionalmente complexa. Cada detalhe da ambientação, principalmente a forma como o México dos anos 50 é representado, acrescenta camadas à história, criando uma sensação de realidade e ficção mescladas. As fotografias são de uma beleza estonteante, capturando a decadência, a solidão e o vazio que permeiam a vida de Lee.
A trilha sonora, por sua vez, é uma das grandes surpresas do filme. Com composições de Trent Reznor e Atticus Ross, conhecidos por sua habilidade em criar atmosferas densas, e a inclusão de "Come As You Are", do Nirvana, especialmente em uma cena crucial, o filme não só faz uma escolha anacrônica, mas também subverte a ideia de um filme ambientado nos anos 50. O uso de Nirvana, como a música de fundo para momentos de tensão e reflexão, é uma das escolhas mais ousadas, que não só quebra o tempo, mas também acentua o conflito interno dos personagens e a busca por identidade.
O mesmo se pode dizer de "Leave Me Alone", do New Order, que configura uma cena frenética e bucólica ao mesmo tempo. Reznor e Ross ainda contam com a ilustre participação de Caetano Veloso em "Vaster Than Empires". Outra canção que embala as cenas e acrescenta um charme e uma melancolia oportuna é uma versão de "All Apologies", do já citado Nirvana, porém aqui na voz doce e meiga de Sinéad O'Connor. Guadagnino sabe, como ninguém, criar essas ambientações e atmosferas unindo cenários, fotografia e trilha sonora.
No entanto, Queer também sofre de um problema que não pode ser ignorado. A montagem, que inicialmente contava com três horas de duração, foi encurtada para tornar o filme viável para distribuição. Esse corte de material, necessário para atender à logística de lançamento, prejudica o desenvolvimento da história, especialmente no que diz respeito à jornada sentimental de Lee e Eugene. O final, especialmente, peca por uma falta de fechamento. Há uma grande ruptura na narrativa, onde temas e relações se perdem na transição para uma experiência mais visual e surreal.
A partir da solidão de Lee, que se perde entre os vícios e a busca por uma conexão genuína, Queer se torna uma reflexão sobre identidade, autossabotagem e o peso de um passado que nunca se apaga. O filme pode não ser perfeito em sua execução, mas é uma peça cinematográfica que oferece um olhar profundo sobre o desejo, a masculinidade e a fragilidade humana, em uma história de amor que, ao contrário de ser resolvida, se dissolve em um abismo de descompasso e busca desesperada por algo mais.
Quem conhece o jeito minimalista e único de filmar de Luca sabe muito bem o que irá encontrar. Queer é uma película intensa, repleta de cenas bonitas, fotografias icônicas, diálogos inteligentes e camadas, com uma narrativa que não tem medo de subverter expectativas, mas que também se vê limitada pela falta de coesão no final. Mesmo assim, é um filme que vale ser visto, especialmente pela atuação de Daniel Craig, que deixa para trás o James Bond e traz à tona um Lee dolorosamente humano.
*Ayahuasca é um chá com potencial alucinógeno capaz de provocar alterações na consciência por um período de até 10 horas.
Queer
Ano: 2024
Gênero: Drama
Direção: Luca Guadagnino
Roteiro: Justin Kuritzkes, William S. Burroughs
Elenco: Daniel Craig, Drew Starkey, Henry Zaga
País: EUA, Itália
Duração: 135 min
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