Um lindo lembrete de que, mesmo diante de um mundo hiperconectado e fragmentado, ainda há espaço para a arte profunda e transformadora
Existe um elo que chama, que queima e provoca: um caminho sem volta, uma viagem interior e exterior. É o que pulsa e cresce na alma ao ouvir Psiconáutica, segundo álbum de estúdio do mineiro Fernando Mascarenhas. O jovem músico nos propõe uma autoanálise através de uma fusão cósmica da Tropicália com aquele requinte regionalista inspirado no Clube da Esquina. Mascarenhas é astuto, sabe o que quer e o que deseja dizer, mergulhando o ouvinte em um diálogo entre passado e presente. Ao mesmo tempo em que enraíza sua sonoridade em Minas Gerais, ele mira também o mundo.
Com um título oportuno para essa nossa nova era modernista, o disco desmistifica todos os paradigmas entre navegar pela psique e explorar a nossa própria realidade, o nosso próprio mundo. É como pisar no acelerador e enxergar, com os olhos abertos, as angústias da mente contemporânea, ou até mesmo o tempo, ou a falta dele, nesse mundo acelerado de guerra e caos.
Entre um acorde de guitarra vintage e letras profundamente poéticas, vai se criando um elo entre o macro e o micro. O álbum vai se revelando aos poucos, deixando claro que não é apenas uma abordagem política, mas humana, ao retratar como os conflitos externos se espelham em nossas próprias lutas internas.
“Ampulheta”, faixa que abre o trabalho, já é um convite insólito, cru, honesto e verdadeiro sobre o que é sentir a verdadeira sombra e o terror das guerras. A faixa foi lançada como single, acompanhada de um clipe que captura imagens de ruínas e violência global, conectando a tragédia humana, ocasionada por conflitos como o da Palestina, ao isolamento psicológico do mundo. Fernando toca no coração da ferida, onde muitos não querem ouvir nem saber. Mas “Ampulheta” sabe e jorra isso tudo na sua cara com uma música potente e visceral.
Com um toque singelo e vanguardista, Mascarenhas traça sua leitura sobre as banalidades e as realidades brutais do século XXI, sem se perder na abstração. Psiconáutica aborda redes sociais, o impacto do excesso de informações e a solidão moderna, que corrói feito traça. O disco abre esse universo paralelo entre o mundo físico e o virtual, concentrando seu poder de emanar toda a magistralidade do eu lírico que navega por ondas turbulentas, entre a poesia do dia a dia e reflexões globais. Fernando sabe como resgatar memórias e ascender à essência, seja através desse movimento setentista, que sempre acaba colocando sua música a serviço de um discurso atual.
Faixas como “Trem do Cerrado” trazem a melancolia da terra e a dureza do cotidiano, com toques singelos e melancólicos da música regionalista brasileira, retratando uma paisagem onírica sob Minas Gerais, resgatando e colocando em evidência suas raízes. “Sonha Longe” investiga minuciosamente os labirintos da vida, edificando temas universais, como solidão, conflitos emocionais e sonhos frustrados. Mas você merece uma pausa, você merece o amor.
Entre arranjos que mesclam acordes de guitarras pesadas com texturas melódicas, evocam aquele sabor agridoce dos Beatles e a rebeldia dos Rolling Stones, mas com uma arquitetura sonora profundamente brasileira e atual.
“Do Arco da Velha” e “Balada de um Quase Término” assumem um protagonismo além da música e acabam se tornando uma narrativa sobre quem somos hoje. No caos da modernidade, onde os meios digitais fragmentam nossa atenção e polarizam o discurso, no fundo Mascarenhas está nos lembrando que a introspecção e a arte são formas de resistência.
A sonoridade intemporal e regionalista de “A Vida é Assim” reafirma a identidade em meio à globalização. O diálogo proposto pela canção conversa poeticamente com a Tropicália, com o rock and roll e deságua bem nas curvas do Clube da Esquina. São detalhes que posicionam Psiconáutica como um herdeiro de um legado cultural que, como antes, busca transformar o mundo.
E, por falar nisso, nesse mundo onde o consumo é imediato, Fernando optou por um lançamento cuidadoso e, ao mesmo tempo, progressivo: realizou audições públicas, lançou clipes impactantes e disponibilizou primeiramente o álbum na plataforma do Bandcamp, nadando contra a maré da era dos streamings. Detalhes que refletem não apenas uma busca por valorização artística, mas também um contraponto ao modelo escravista digital.
Indo “Mais Além”, o disco nasce como um manifesto que chama pela memória das tradições culturais, mas faz isso de maneira persistente e eficaz ao dialogar com as crises do presente.
Um lindo lembrete de que, mesmo diante de um mundo hiperconectado e fragmentado, ainda há espaço para a arte profunda e transformadora. Psiconáutica, ao navegar por esse mar da psique e pelos caminhos da vida e do mundo, oferece uma experiência que acaba se tornando uma firme ancoragem, uma base sólida na identidade, quanto um impulso para reflexão. É olhar para dentro sem esquecer o que acontece lá fora.
Uma leitura poderosa de que a arte pode, simultaneamente, consolar e desafiar. Um refúgio e um despertar. Um disco que exige escuta atenta, pois fala sobre o que é estar vivo – e consciente – hoje.
Psiconáutica
Fernando Mascarenhas
Ano: 2024
Gênero: Indie, Rock,
Ouça: "Ampulheta", "A Vida é Assim", "Trem do Cerrado"
Pra quem curte: Beatles, Clube da Esquina
Humor: Provocativo, Poético, Atual
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