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O White Album e a multiplicidade infinita dos Beatles

O silêncio antes do caos

The Beatles
Beatles, 1968 (Foto: Divulgação)

Há um instante no tempo em que tudo parece possível. É o momento em que a música deixa de ser apenas som e se torna território de risco, fragmento de alma. Esse instante existe dentro do White Album, oficialmente The Beatles, lançado em 1968. Duplo, irregular, expansivo, ele não é apenas um álbum: é uma cartografia da incerteza, da ruptura e da invenção desenfreada.



Os Beatles não estavam mais apenas compondo músicas; estavam se desdobrando, testando identidades, jogando suas facetas umas contra as outras. Cada faixa é quase um microcosmo: Back in the U.S.S.R. explode com ironia e nostalgia; Dear Prudence desliza como um sopro de calma em meio à turbulência. Há espaço para tudo: o folk delicado, o rock pesado, o experimentalismo mais estranho que já haviam ousado. Mas o que impressiona é que, mesmo nesse caleidoscópio, cada fragmento é visceral, pulsante, humano.


Fragmentação: essa é a palavra-chave do White Album. Fragmentação de estilos, de estados de espírito, de intenções artísticas. É um disco que, por sua própria natureza, desafia linearidade. Ouça Glass Onion, e perceba o humor interno, quase uma conversa com os fãs; em seguida, mergulhe em Helter Skelter, e sinta o grito primordial do rock puro, agressivo, desesperado. Como sobreviver a tamanha diversidade? A resposta está no próprio ato de escutar: cada faixa exige atenção plena, entrega por completo, abertura para o inesperado.


Mas não é só caos. Há poesia silenciosa em cada canto. Blackbird, tocada com delicadeza, parece suspensa no ar, tocando temas de liberdade e resistência, quase como uma mensagem cifrada para um mundo em convulsão. E Julia, sussurrada por John Lennon, é uma conversa íntima com a memória e a perda, carregando mais verdade em três minutos do que muitos discos inteiros.


O White Album também é político, mesmo quando não parece. Em Revolution 1, a ambiguidade de Lennon sobre ativismo e ação direta reflete os tempos conturbados de 1968. Mas a política aqui não é maniqueísta; ela se entrelaça com o pessoal, o introspectivo, o estético — e nos força a pensar que o privado e o público nunca estiveram separados.



E há risos, há escárnio, há experimentação sonora. The Continuing Story of Bungalow Bill satiriza, brinca, provoca. Cry Baby Cry abre janelas surreais, quase teatrais, em que cada instrumento e efeito cria camadas de significado que desafiam lógica e expectativa. É aqui que a inventividade dos Beatles atinge seu ápice: nenhum padrão, nenhuma regra, apenas expressão e impacto.


Imagem: Reprodução
Imagem: Reprodução

Pergunto ao leitor: como se enfrenta um álbum que é, ao mesmo tempo, íntimo e universal, caótico e elegante, sério e jocoso? O White Album não entrega respostas fáceis. Ele exige presença. Ele exige coragem de sentir tudo de uma vez — de rir, chorar, se surpreender.


A relevância histórica é inegável: este é um disco que transcende o tempo, que inspira gerações, que se permite ser simultaneamente distante e profundamente pessoal. É o ponto em que os Beatles não apenas transformam o rock, mas também a própria ideia de álbum como arte. Não há concessões, não há limites, não há certezas. Só música. Só humanidade.



E no fim, a obra nos lembra que a multiplicidade é a essência da criação — e que o verdadeiro legado não é estar certo, mas estar inteiro, em todas as suas contradições.

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⭐⭐⭐⭐⭐

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