Terror/sci-fi com algum aceno ao western se destaca como terceira empreitada do cineasta nova-iorquino
Quando certo artista ou banda desponta na cena musical com um álbum de estreia irretocável, inevitavelmente a iminência de êxito ou risco de desapontamento com relação ao trabalho sequencial ganha força nas discussões, afinal as atenções que foram destinadas ao feito propiciaram a vultosa expectativa. O mesmo vale para a exigente carreira na direção cinematográfica.
Com o impactante, inovador e aterrorizante ‘Corra’ (2017), Jordan Peele colocou a crítica de joelhos e caiu nas graças de grande parte dos cinéfilos, sendo muitos destes não necessariamente seguidores do terror. Um filme necessário e bastante oportuno, diga-se. Não há como desconsiderar o momento do lançamento, sendo então o primeiro ano de vigência da era Trump. Ora, e como não entender o racismo como um brutal “terror social”? A grande sacada de Peele em sua genial estreia como diretor de um longa foi um dos maiores sopros de criatividade na história recente do cinema e que lhe rendeu o Oscar de Melhor Roteiro Original.
O ótimo ‘Nós’, de 2019, reafirmou a sua notória habilidade por trás das câmeras, conduzindo mais uma trama totalmente inusitada e fora das convenções, afastando de vez a ameaça de um possível estigma de hype passageiro.
‘Não! Não Olhe!’ entrou em cartaz precedido por diversas especulações, pois já se tinha o conhecimento de que o terceiro filme dirigido pelo cineasta (mais um também escrito e produzido por ele) entraria no terreno da ficção científica, com a narrativa desta vez envolvendo alienígenas e OVNIs. A despeito do muito odiado e rejeitado título em português, os admiradores do cinema de Jordan Peele puderam se sentir aliviados ao constatar a eficiência mantida intacta até aqui, sendo plenamente brindados com mais uma experiência grandiosa, intrigante e divertida. Acredite: ao término da sessão, o discutível título nacional até que se justifica, de certa forma.
Parafraseando um célebre e saudoso apresentador da televisão brasileira, Jordan Peele não está aí para explicar e, sim, para confundir. Realizadores da sétima arte como David Lynch e Richard Kelly, cada um ao seu modo, já trafegaram por labirintos caóticos que sugerem aquele certo nó na assimilação do espectador. Peele não pode ser classificado como um mero espalhador aleatório de easter eggs ao léu. Mas cada um que busque apoio nas suas ferramentas teóricas para a absorção dos conteúdos visíveis (ou não) em tela. Em determinada cena, um simples objeto inanimado que desafia parâmetros científicos de Newton pode continuar alimentando dúvidas e questionamentos por tempos, sem que se vislumbre um satisfatório consenso a respeito daquele mistério. Já o estranho e enigmático falecimento de um progenitor encontra o devido esclarecimento, à medida que a história caminha para o ato de desfecho.
Terror/sci-fi com algum aceno ao western se destaca como terceira empreitada do cineasta nova-iorquino, empolga e garante, sim, entretenimento de primeira, mas com toda aquela carga característica de elementos e símbolos capaz de instigar o debate, estabelecer certa afirmação e gerar diversas interpretações por parte do público
O óbito em questão afeta diretamente a vida dos irmãos Haywood, interpretados pelo – também – “oscarizado” Daniel Kaluuya (de volta à parceria com o diretor, após o grande sucesso de ‘Corra!’) e pela Keke Palmer. Ele é OJ, introspectivo, tímido, entediado, sem muita destreza social. Ela, uma Emerald radiante, bem-humorada, extrovertida, elétrica, hábil na conversa. O luto é o mesmo para ambos, mas cada um carrega a sua dor de forma particular. É preciso seguir, cuidar das coisas práticas que a vida exige, já que os negócios da família não podem parar. Mas há uma ameaça incompreensível e aterradora sobre suas cabeças. E isso não põe em risco apenas a permanência das atividades no Rancho Haywood, onde são criados e treinados cavalos para a realização de filmes.
Além da dupla, um personagem também tem a sua grande importância e inegável peso no desenvolvimento do roteiro. Jupe, vivido por Steven Yeun (bastante conhecido por The Walking Dead) foi um ator mirim com certo sucesso televisivo em uma atração de muita audiência na década de 1990. Ele passou a viver com um terrível trauma proveniente de um fato cruel ocorrido nessa época e acabou capitalizando em cima da sua tragédia pessoal, explorando também isso em seu parque temático de velho oeste. Cabe aqui lembrar um notável pensador francês chamado Guy Debord, que já alertava nos anos 60 como um aspecto indesejável da existência humana se converte em produto, mercadoria. Debord, um crítico da espetacularização desenfreada, foi também um apaixonado por cinema.
O nome de OJ chega a causar uma reação surpreendente em uma personagem que surge por pouco tempo e basta uma breve pesquisa (para quem não se lembra ou simplesmente não chegou a conhecer) para se ter ciência de um dos maiores julgamentos-espetáculos da história norte-americana, que aconteceu na década de 90, com alta cobertura midiática, amplamente televisionado, tendo como figura central (réu) uma grande celebridade negra do esporte. Lembrando que a internet ainda engatinhava nesse período.
O bom humor de Emerald encontra certo par em Angel, vivido por um carismático Brandon Perea. Angel é funcionário de um estabelecimento comercial, possui habilidades na área de tecnologia e acaba, por força do destino, se unindo aos irmãos Haywood na guerra contra a força aterrorizante – o suposto OVNI - que vem do espaço. Ele também dá leveza a certos momentos, com falas e atitudes que despertam alguns risos em meio a toda a tensão crescente. Michael Wincott se juntará ao trio e seu personagem reforça a proposta da premissa do real/visível que, para se tornar crível, precisa ser sugado pelas lentes de uma máquina para posterior reprodução dessa verdade que foi capturada em registro. Qualquer evento digno de espetáculo só ganhará verossimilhança com a visibilidade materializada numa tela. E é graças a uma rara e precursora imagem em movimento do século 19, que o mundo agora toma conhecimento, através do cinema de Peele, de um documento histórico comprovando que este primeiro arquivo do tipo traz um homem negro sobre um cavalo.
O diretor alfineta, à sua maneira, o universo western predominantemente branco dando luz a essa informação pouco propagada e ressalta ainda esse posicionamento de afirmação com o personagem de Kaluuya em típico momento de cowboy. É um simbolismo forte e rico. Peele não abandonou de jeito nenhum seus entornos emblemáticos, alegóricos até aqui. Não por acaso, a trilha sonora resgata o esquecido e, para muitos, desconhecido cantor Exuma, das Bahamas, artista ousado e criativo revelado na década de 1970. Sua música pode ser ouvida em uma parte muito interessante, quando Emerald coloca um vinil para tocar.
Ainda sobre música, a faixa ‘Nope’ do compositor Michael Abels pode ser descrita como uma homenagem ao gigante Ennio Morricone, o eterno e genial maestro das trilhas inesquecíveis de grandes clássicos do western. Alguém lembrou das camisetas do Black Flag e do Michael Jackson em ‘Nós’? Aqui temos os irmãos Haywood usando t-shirts vintage de duas importantes bandas do rock alternativo americano. Emerald traz à tona The Jesus Lizard, da qual Kurt Cobain era fã, tendo o Nirvana até dividido um split com o grupo. Vale até uma brincadeirinha em observar a capa do álbum ‘Down’, de 1994, e comparar levemente com um dos cartazes de ‘Não! Não Olhe!’. Já OJ aparece com uma camiseta vermelha do Rage Against The Machine, estampa do revolucionário mexicano Emiliano Zapata. Em se tratando de Jordan Peele, é possível afirmar que nada ajuda a compor um cenário simplesmente por acaso.
A paixão por clássicos filmes e diretores icônicos é fator poderoso que move Jordan Peele na concepção de suas obras. Em ‘Não! Não Olhe!’ é possível identificar uma nuance ou outra que pode perfeitamente lembrar algo da obra-prima do mestre do suspense Alfred Hitchcock, ‘Os Pássaros’ (1963). A ameaça que vem de cima, a sensação de claustrofobia que se intensifica mesmo nos ambientes e espaços abertos, mais amplos ou isolados. Como não lembrar de certos balões em determinadas cenas nos dois filmes? A relação homem-natureza e os supostos controle e domínio da vida animal também são aspectos que podem muito bem ser pensados a partir das análises mais entranhadas desses filmes, ambos com suas qualidades gigantescas e bastante peculiares. O diretor não deixa também de prestar a sua homenagem aos chamados filmes B de décadas passadas, em que tantas produções de baixo orçamento, muitos títulos de terror e sci-fi, marcaram época.
Peele nos consegue mostrar que todo espetáculo tem seu preço. A natureza e o desconhecido também estão presentes para cobrá-lo. A sua câmera, ao captar a beleza da imensidão de toda aquela área campestre imponente em que os personagens estão inseridos e do céu misterioso sobre eles, seja à luz do dia, ao entardecer e com a chegada da noite imprevisível, convida o espectador a uma imersão deliciosamente sufocante no inesperado que se manifesta na espreita.
O entretenimento está garantido, obviamente, ao fim da experiência. Mas a marca da inquietude artística do cineasta está lá. Questões relacionadas à diversidade étnica, sociedade, história. Na criação de Jordan Peele, o terror pode vir de forças obscuras, enigmáticas, incompreensíveis até e de origem desconhecida, mas ao mesmo tempo ele evidencia, à sua maneira, que outras ameaças igualmente aterrorizantes estão sempre aí muito próximas e presentes. Até aqui, Peele só acertou. Que todo esse brilho permaneça.
Não! Não Olhe!
Nope
Ano: 2022
País: EUA
Duração: 130 min
Direção: Jordan Peele
Roteiro: Jordan Peele
Elenco: Keke Palmer, Daniel Kaluuya, Steven Yeun e Keith David
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