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Foto do escritorMarlons Silva

Nosferatu: Pavor imponente e uma estranha beleza insurgente das sombras

Atualizado: há 11 horas



Um sonho de infância do diretor Robert Eggers se transforma em uma notável realização artística prontamente destinada a status de clássico contemporâneo

Lily-Rose Depp em Nosferatu, de 2024
Divulgação/Focus Feature

Um renomado escritor disse certa vez que, quando criança, ao contrário da maioria de seus coleguinhas, não temia o tal monstro que ficava embaixo da cama à noite nos quartos. Ele queria ser esse próprio monstro! A literatura de terror é grata até hoje por esse sentimento. É de se esperar que, num futuro não tão distante, a história do cinema agradeça sem qualquer ressalva ao desejo de menino que assombrou Robert Eggers quando apreciou aquele que pode ser considerado, talvez, o marco mais influente e significativo do Expressionismo Alemão.


‘Nosferatu’ (1922), de Friedrich Wilhelm Murnau, atravessou várias décadas constituindo o imaginário gótico de diversas gerações, alimentando a curiosidade investigativa dos fanáticos do terror cinematográfico e preenchendo também, com seu legado sombrio, os tantos espaços do gênero  na esfera da cultura pop.


O pequeno Eggers foi impactado de forma tão contundente ao se deparar com as imagens do antigo clássico que, desde então, fixou em mente que um dia filmaria aquilo, do seu jeito, respeitando a narrativa, a qual já tinha sido concebida sob certo viés de adversidade, envolvendo a família de Bram Stoker, o autor irlandês de “Drácula”, que não autorizou a adaptação para o filme de Murnau. Daí as diferenças de construção com relação à obra literária original e, que mesmo assim, não foram suficientes para que o lançamento na época recebesse a devida validação. Eis que, com o tempo e as flexibilizações naturais que vêm com o passar dele, aliadas ao salvamento de preciosas cópias, ‘Nosferatu’ de Murnau veio a se tornar o acontecimento de conhecida e tamanha grandiosidade no universo da sétima arte, como ficou notório.


A materialização do sonho profissional de criança de Robert Eggers trata-se, na verdade, de um segundo remake, considerando o filme pouco comentado e um tanto subestimado do diretor alemão Werner Herzog na década de 1970. Se adentrando mais nesse caminho histórico, não há como não mencionar – também – o colossal ‘Drácula de Bram Stoker’, obra-prima de Francis Ford Coppola, de 1992, para muitos o maior, o filme definitivo de vampiro.



A figura grotesca, monstruosa e repulsiva encarnada pelo ótimo Bill Skarsgard (para lá de irreconhecível, sem um traço ínfimo que possa remeter à fisionomia  e ao físico do ator sueco) não lembra em nada aquele galanteador, fino e charmoso personagem de Gary Oldman caminhando  nas ruas de Londres, ansioso pelo encontro com a amada Mina (Winona Ryder), que tanto encantou o público feminino, quando da aparição humana de Drácula naquele longa.


No ‘Nosferatu’ de Eggers, o aparente moribundo Conde Orlok (Skarsgard) é arrogante, autoritário, fastidioso e amargo. A personificação maléfica do indivíduo condenado à solidão perpétua e inesgotável. A pena dolorosa a ser cumprida conforme os desígnios do inferno que devasta sua miserável e desprezível existência. A aparência de Orlok não se revela nos primeiros instantes.


Imagem: Divulgação

Eggers deixa o tenebroso conde se mostrar mais em sua total imersão nas sombras, aumentando ainda mais a atmosfera e o clima sufocantes que fisgam o espectador. ‘Nosfeartu’ extrai exatamente uma beleza estranha e impressionante em toda a profusão de sombras e ambientes góticos , desse pesadelo em forma de arte, o qual se originou daquele sonho do pequeno Robert.


O funesto anfitrião receberá a visita profissional do jovem Thomas Hutter (Nicholas Hoult) em seu decadente castelo na Transilvânia. Hutter é ambicioso, recém-casado e almeja uma vida de ascensão social na Alemanha da primeira metade do século 19. Os espaços urbanos da Europa da época já então recebendo os impactos rápidos dos primórdios do inevitável processo de industrialização que tomava força descomunal, configurando as características da era contemporânea, incluindo aí as divisões classistas e a hierarquia do trabalho.


O inexperiente e apaixonado Hutter tem como esposa a linda, doce e frágil Ellen, vivida por Lily-Rose Depp, deslumbrante na tela. Daquelas presenças femininas que já se fixam com um poder irresistível para cravar distinguível imagem das personagens arrebatadoras mais marcantes do cinema. Ellen é um misto de sensualidade, insegurança, sedução e perturbação. Mulher jovem que se vê envolvida em movimentos estranhos que parecem exprimir pavor e – obscuros – desejos simultaneamente. Esta Ellen, de Depp, talvez sirva de inspiração (tomara) para ousadas garotas góticas que preenchem com distinto charme as plateias nos shows de descoladas bandas de goth rock ou mesmo em baladas noturnas pós-punk/darkwave.



A sugestão é preciosamente válida para o próximo Halloween, por que não?  Lily-Rose em ‘Nosferatu’ se torna a musa absoluta destes tempos para os morcegos sem asas de camisetas pretas do The Cure ou do Molchat Doma, para os vampiros e não-vampiros de todas as galáxias! Desnecessário citar aqui a contribuição da genética familiar da atriz?


A Ellen Hutter que se destaca nesta belíssima criação de Robert Eggers proporciona reflexões que evidenciam o papel confuso e desafiador dessa mulher numa sociedade em frequente evolução, tendo em vista o embate que se impõe involuntariamente entre as vontades íntimas mais ocultas e as convenções institucionalizadas. Bom se atentar ao termo melancolia que, em dado momento, é associado à personagem no filme.


Ellen expõe uma tristeza constante, manifestada de forma que se adiciona aos seus abalos estranhos. A palavra depressão seria empregada como diagnóstico décadas mais a frente do recorte temporal em que a narrativa se insere, só para frisar. Mas não deixa de ser mais um ponto importante na constituição da instigante personagem na trama macabra, ao abordar a vulnerabilidade de sua saúde mental naquele contexto.


Misteriosamente, é essa figura feminina assombrada e, a seu modo, sedutora,  que serve de incentivo e atração induzindo o macabro Conde Orlok à mudança para a cidade alemã de Wisburg, onde reside o casal Hutter. Ainda no castelo, no ato de fechamento do negócio entre Thomas e o nobre velho, envolvendo a compra do imóvel que será o futuro endereço do enigmático homem sombrio, há um breve diálogo no qual fica nítido o interesse crescente na época pela busca das possibilidades que os centros urbanos passaram a propiciar, em detrimento do que as áreas campestres ou mais isoladas mantinham.


Na cidade estaria o avanço da modernidade aliado ao pensamento calcado nas emergentes diretrizes científicas, algo que se opunha às crendices tidas como ultrapassadas, às práticas que envolviam o misticismo e o oculto, ações perceptíveis na pequena comunidade que Thomas encontra em sua longa viagem rumo ao castelo do poderoso e maldito (assim rotulado por aquele pequeno grupo de habitantes do local) cliente. Orlok associa atraso àquelas pessoas do vilarejo, ainda presas a culturas e dogmas que não encontram mais tantos adeptos fervorosos nas atraentes cidades que se expandem no velho continente.


Para se aproximar da desejada Ellen, o conde asqueroso precisa afastar em definitivo dela aquilo que representa seu maior obstáculo para tal finalidade. Ironicamente, o profissional que vai ao seu encontro visando ganhos consideráveis resultantes do êxito naquela relação de compra e venda e almejando o sonhado salto na promissora carreira será a chave que levará o demoníaco ser à cobiçada beldade.


Lily-Rose Depp em Nosferatu, de 2024
(Foto: Regency Enterprises)

Eggers foi perfeccionista, rigoroso e exigente para que todo esse seu trabalho de adaptação ganhasse todos os elementos, composições e qualidades que condicionam seu ‘Nosferatu’ ao status instantâneo de clássico incontestável deste século. Além de ter nas mãos o elenco primoroso (Willem Dafoe é uma espécie de selo de garantia no cinema atual: onde ele está, se espera uma obra não suscetível à indiferença ou à desconsideração), o diretor fez questão de trabalhar minuciosamente os cuidados preciosos que elevam artisticamente o seu filme a um nível de beleza e assombro pouco visto por aí.


Saltam aos olhos a utilização das (poucas) cores, os figurinos impecáveis, uma criteriosa reconstituição de época. Em alguns momentos, parece que se está contemplando – isso não é um desmerecimento , que fique bem claro -  um videoclipe longo, de tons e camadas cinzentas e escuras, de ostentações mórbidas que abraçam ao mesmo tempo a tristeza e o vazio inerentes à tragédia da existência humana, corroborando a inevitabilidade de um encerramento que se impõe diante da imponência daquele  pavor incomparável. É possível imaginar o deleite de Billy Corgan estando inserido nessa viagem. The world is a vampire...

 

Até aqui, ‘Nosferatu’ se firma como o ápice da filmografia de Robert Eggers, embora muitos ainda atribuirão, com razão de sobra, essa qualificação à sua brilhante estreia com o – também – belo, denso e atmosférico ‘A Bruxa’, de 2015. Uma estreia de “gente grande”, de um dos grandes realizadores atuais, que deve muito à impressão daquele menino  na infância, que se deixou encantar pelo filme expressionista de Murnau, o qual adaptou para uma peça teatral ainda em seus tempos escolares. Com a grande realização do sonho de seu belíssimo “filme de vampiro”, a certeza é que muitos cinéfilos serão inspirados e impactados perante um título que já se impõe como um clássico perfeitamente pronto no cinema contemporâneo.

 
Imagem: Divulgação
 

Nosferatu


Ano: 2024

Gênero: Terror, Mistério, Fantasia

Direção: Robert Eggers

Roteiro:  Robert Eggers, Bram Stoker

Elenco: Lily-Rose Depp, Nicholas Hoult, Bill Skarsgard, Willem Dafoe

País: Estados Unidos

Duração:132 min

 

NOTA DO CRÍTICO: 9,0

 


 

 

 

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