Sabe aquela dupla de ataque que empolga, funciona perfeitamente, tem toda a química essencial para isso e faz o torcedor reviver uma certa era de ouro do futebol? Pois é, agora imagina algo assim na música. É o que acontece nesse encontro fantástico entre Bruno Mars e Anderson .Paak, projeto ao mesmo tempo divertido, ousado e de – muita – responsa sob a alcunha Silk Sonic. Uma ideia que amadureceu há alguns anos atrás, com as turnês que favoreceram bastante a amizade entre ambos os artistas e o entrosamento musical, considerando também as devidas afinidades que foram decisivas no processo de criação, resultando no álbum mais hot e sedutor da temporada.
O interessante aqui é o prazer de apreciar um trabalho sofisticado, luxuoso, de muito bom gosto, encabeçado por uma dupla millennial que só viu o programa televisivo setentista Soul Train através de imagens de arquivo ou mesmo via YouTube, mas que poderia viajar numa linha imaginária do tempo e se apresentar perfeitamente lá.
'An Evening With Silk Sonic' é um tributo de altíssimo nível à excelente música negra norte-americana feita na década de 70, época riquíssima e frutífera, afortunada com tantos registros venturosos e iluminados, em que uma leva brilhante de grandes produções artísticas das searas soul, disco e funk invadia pistas, vitrolas, rádios e paradas de sucesso. A nostalgia é um fator que, de certa forma, perpassa pela obra, mas não é um elemento definidor de sua essência, enquanto resultado. Bruno e Anderson são astros de seu tempo, criadores pertencentes a um presente prolífero e de múltiplas facetas no vasto terreno pop contemporâneo. Meninos que cresceram sob o reinado de Michael Jackson, Prince e Whitney Houston, plenamente cientes da grandeza estratosférica desses nomes colossais, mas que, com o tempo, se permitiram entrar numa máquina do tempo para poder buscar os arquétipos históricos absolutamente imprescindíveis para o que seria/é feito de melhor no universo da black music.
A presença da lenda Bootsy Collins no álbum, um padrinho-mentor, garante o aval, que poderia ser declarado mais ou menos assim, com o perdão da palavra: “Não queiram duvidar desses garotos, pois eles sabem muito bem o que estão fazendo e fazem muito bem, portanto não mexam com eles!”
Precisaria dizer mais? Impressão esta que pode ser aumentada com a participação igualmente gigantesca do cantor e baixista Thundercat, um dos nomes mais respeitados e aclamados na cena atual. Falando em baixo, esse disco vai agradar em cheio aos admiradores das quatro cordas. É uma linha matadora atrás de outra, que é uma beleza.
Já nos primeiros – e agora já distantes - meses deste confuso 2021, fomos bombardeados com o hit chamativo e primeiro single, a pegajosa (no bom sentido) ‘'Leave the Door Open", que tomou conta da programação das rádios e invadiu também as redes. Me lembro de conhecê-la através de um ou outro viral curtinho do Tik Tok. Certa manhã de sábado, selecionei uma playlist de soul clássico no streaming para suavizar o tempo custoso da tradicional lavagem de louças e qual não foi minha surpresa ao perceber que a faixa estava lá, em meio a joias magníficas de Marvin Gaye, Bobby Womack, Aretha Franklin e Roberta Flack, dentre tantos outros gigantes. Só então é que pude ouvi-la inteira e o efeito foi imediato, “Caramba, isso é muito bom mesmo!”. Sim, tinha algo bastante especial ali. Merecia atenção desde já.
"After Last Night" é um dos destaques e, como não poderia ser diferente, ela traz as célebres presenças, já citadas aqui, de Collins e Thundercat. Tem uma vibe que poderia perfeitamente ser associada a algo de The Isley Brothers ou mesmo a Aaliyah, garota revelação prodígio noventista que teve a vida tragicamente interrompida no começo dos anos 2000. Bom lembrar também que Alicia Keys, no decorrer de sua discografia, sempre se caracterizou por efetuar esses resgates históricos sofisticados, com a sua marca diferencial. A sequência que vem a partir daí é destruidora e traz as minhas preferidas "Smokin Out The Window" e "Put On A Smile", cada uma com seu feeling devastador incontestável. Corações empedernidos desavisados que se preparem.
A sensação de que o álbum foi construído numa atmosfera de alegria, diversão e amizade é real, mas não suplanta a seriedade e a garra investidas aí. Mars aperfeiçoa seu talento e assina a produção ao lado de D’Mile. Vai longe como produtor, pode anotar. A parceria da dupla de frente do projeto fez com que se revelassem verdadeiros estudiosos e pesquisadores, indo a fundo na busca dos timbres, recursos analógicos e técnicas diversas empregadas. Tudo muito refinado, bem tocado e cantado. Com bastante alma e elegância, soa verdadeiro e com a entrega precisa e perfeita. Bruno já é figurinha carimbada do pop moderno, presença assídua e badalada nos eventos grandiosos da música atual e, justiça seja feita, lançou um álbum bem interessante em 2016, 24k Magic, época em que o desenrolar causado por este trabalho permitiu a aproximação com Anderson. Quanto a este último, se antes era apenas um nome a passar despercebido, notado com pouca atenção ou mesmo indiferença para alguns (confesso que me incluo nessa), ganha agora uma visibilidade robusta que o coloca de vez nesse enorme mapa. Aqui se impõe também como notável batera.
É um disco que coloca aquele sorriso inconfundível no rosto, mesmo em dias mais nebulosos. Uma levada mais funky aqui, uma balada para confortar a alma ali e, no geral, tudo incita o corpo divinamente. É possível fantasiar até sobre uma trilha sonora de algo como – vá lá - Jackie Brown 2 no comando do Silk Sonic.
Sobre a visita de luxo a um passado glorioso, sem essa de dizer que “éramos felizes e não sabíamos” (e a cegonha só trouxe Mars e .Paak depois da primeira metade da década de 80, convém lembrar) ou bobagenzinhas semelhantes de saudosistas inveterados. Podemos ser felizes agora também, conhecedores de tal satisfação, sem criar um tipo de dependência que condicione fixação em cômodo alicerce para a prevalência da inércia.
Esse é daqueles registros perfeitos para embalar preciosos momentos festivos e de celebração, flertes diversos, reuniões das mais aguardadas entre gente querida, ainda mais agora quando tudo parece caminhar para uma brecha bem-vinda que dá a sonhada permissão aos raios luminosos. Esperamos que assim seja. Se for tentar engatar um romance com alguém, não perca tempo e já põe pra tocar no primeiro encontro! É tudo tão redondinho, flui com aquela leveza extraordinária e passa tão rápido naquela meia horinha, que o repeat é inevitável.
Resta saber agora que voos a dupla pretenderá alçar mais a frente e se esse time que está ganhando aí sofrerá mudanças, seja na formação que maravilhosamente contribuiu ou na orientação sonora. O que se viu/ouviu até então foi para deixar até o mais pessimista sonhar, se divertir, se alegrar. Saber do presente que é a vida no presente, mantendo o respeito por tudo aquilo de mais sagrado que possibilitou chegar até aqui.
FICHA TÉCNICA
Álbum: An Evening With Silk Sonic
Integrantes: Bruno Mars e Anderson .Paak
Lançamento: 12 de novembro de 2021
Gênero: R&B, Funk e Soul
Ouça:"Smokin Out The Window", "Put On A Smile" e "After Last Night"
Estilos: Retro-Soul
OUÇA O DISCO NO SPOTIFY:
VEJA O CLIPE DE "SMOKIN OUT THE WINDOW":
Marlons Silva
Redator
Sempre que pode ocupa seu tempo com o som de Jorge Ben Jor, Carole King e David Bowie, os livros do Irvine Welsh, os filmes do Ingmar Bergman e umas brincadeiras com a gatinha Lilly. Gosta muito também de pedalar. Acha que sem a música e a arte em geral, a vida seria um erro e também uma piada ruim muito sem graça. Enquanto aguarda ansiosamente uma temporada nova de Black Mirror, está sempre sendo apresentado a algo do universo dos animes pela filha Stella.
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