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Foto do escritorMarcello Almeida

Jacques Audiard apresenta um espelho das transformações do nosso tempo em Emília Pérez



Audiard entrega uma obra que, mesmo com suas imperfeições, consegue emocionar, provocar e, acima de tudo, se mostrar indispensável.

Cena do filme Emília Pérez
Imagem: Reprodução

Em um momento em que o cinema busca traduzir as transformações do mundo moderno, Emília Pérez, de Jacques Audiard, se impõe como um verdadeiro marco. Vencedor do Globo de Ouro de Melhor Filme em Língua Não Inglesa, superando Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, o filme ressignifica os limites do gênero ao misturar drama, crime e musical em uma narrativa sobre identidade, mudança e redenção. É um filme impossível de ser desconectado do nosso presente, onde questões de gênero, direitos trans e representatividade são temas pulsantes no debate cultural.


A mudança de gênero é tratada aqui com uma delicadeza ímpar. Não é uma questão isolada ou superficial, mas um eixo central que guia tanto a narrativa quanto a transformação interna da protagonista. Audiard nos mostra que a transição de Emília não é apenas física, mas simbólica, um renascimento que dialoga com os conflitos de aceitação, posicionamento e resiliência. No entanto, o filme vai além do individual e traça paralelos com os debates contemporâneos sobre identidade e pertencimento, colocando em cena a coragem necessária para desafiar as estruturas de poder e os preconceitos que atravessam a sociedade.


Embora isso seja uma guinada considerada um tanto radical para o diretor, o longa também consolida sua constante busca cinematográfica por reinvenção, um tema que permeia boa parte de sua filmografia. O filme não apenas desafia convenções, mas também reafirma a capacidade do cineasta de transitar entre diversas narrativas e sensibilidades culturais, mesmo que em um formato que promete dividir opiniões.



A trama segue Rita (Zoe Saldaña), uma advogada que aceita trabalhar para Manitas (Karla Sofía Gascón), líder de um cartel mexicano, em sua busca por renascer como Emília Pérez. A cirurgia de redesignação sexual não é tratada apenas como um evento transformador para a personagem principal, mas como uma metáfora para algo maior: a necessidade de confrontar o passado para construir um futuro, mesmo quando os laços do que já foi vivido se recusam a desaparecer.


Imagem: Reprodução

Em um contexto onde as pautas LGBTQIA+ estão cada vez mais no centro das discussões culturais, Emília Pérez surge como uma obra de extrema relevância. O longa não apenas humaniza o processo de transição, mas também destaca o peso emocional, psicológico e social de um passado que insiste em se manifestar. Carla Sofía Gascón, em uma atuação monumental, dá voz e corpo a uma mulher que precisa se reconstruir em meio a um cenário de dores e esperanças, iluminando as camadas mais profundas da subalternidade.


E isso vai muito além de um estudo de personagem. O filme é uma análise das camadas de exclusão que indivíduos trans enfrentam ao tentar reescrever suas histórias em uma sociedade que frequentemente lhes nega voz. Emília não quer apenas escapar de um cartel, mas também desafiar a estrutura que a colocou como subordinada a uma identidade que nunca lhe pertenceu. Nesse sentido, o roteiro se transforma em uma baita celebração da resiliência, mas também faz um convite à reflexão sobre a dificuldade de romper com traumas e erros do passado.


O musical, um dos elementos mais intrigantes da obra, vai muito além do entretenimento. As letras, carregadas de ironia e linguagem cotidiana, dialogam com os dilemas das personagens de maneira inesperada e subversiva. A transição do musical para o drama e a comédia acontece de forma orgânica, com Audiard optando por privilegiar a intimidade das relações e os momentos de maior impacto na tela. No entanto, essa escolha também tem seu preço: o ato final, que deveria amarrar os arcos da história, soa diluído em comparação ao restante do filme, perdendo parte de sua força.


À primeira vista, a decisão do diretor de transformar essa história em um musical pode parecer fora de lugar, mas logo fica claro que uma narrativa tão imprevisível e carregada de contrastes só poderia ganhar força e sentido ao se apoiar nessa forma de expressão.


O filme ganha fôlego nas atuações impecáveis do elenco. Carla Sofía Gascón entrega uma performance brilhante como Emília, mergulhando nas contradições de uma mulher marcada pelas cicatrizes de um passado sombrio enquanto luta por um lugar onde possa, enfim, ser quem é. Zoe Saldaña e Selena Gomez completam o trio principal com interpretações igualmente poderosas, trazendo à tona toda a intensidade e os dilemas que atravessam suas personagens.


O filme de Audiard surge como um dos grandes adversários de Ainda Estou Aqui na temporada de premiações. Enquanto o longa de Salles mergulha na saudade e nos laços familiares, Audiard opta por explorar a complexidade dos recomeços e o confronto com feridas que insistem em permanecer abertas. Ambos os filmes se apresentam como visões distintas, mas profundamente conectadas, de um cinema que busca cada vez mais capturar, com honestidade e sensibilidade, os dilemas mais íntimos da condição humana.



Emília Pérez não é apenas um filme, é um reflexo poderoso do tempo em que vivemos. Em uma era marcada por rupturas e transformações, o longa nos convida a olhar com mais empatia para aqueles que, muitas vezes contra todas as adversidades, tentam ressignificar suas próprias vidas. Jacques Audiard entrega uma obra que, mesmo com suas imperfeições, consegue emocionar, provocar e, acima de tudo, se mostrar indispensável.

 

Emília Pérez


Ano de produção: 2024

Gênero: Drama, Musical

Direção: Jacques Audiard

Roteiro: Jacques Audiard, Thomas Bidegain

Elenco: Karla Sofía Gascón, Zoe Saldaña e Selena Gomez 

País: Espanha/EUA

Duração:132 min


 

NOTA DO CRÍTICO: 7,0

 

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