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IRA! e o grito das ruas: 'Mudança de Comportamento' e o nascimento de uma era

As letras trazem ironia, crítica social, angústia existencial — e tudo isso embalado por melodias explosivas

IRA!
Imagem: Reprodução

Lançado em 1985, Mudança de Comportamento não é apenas o disco de estreia do Ira! — é o nascimento de uma urgência. Uma estreia que chega como quem não pede licença, mas escancara a porta, com guitarra na mão e poesia urbana na ponta da língua. O ano não era qualquer um: o Brasil saía da ditadura, o rock nacional ganhava as rádios, e uma juventude inteira precisava dizer o que sentia, o que via e, principalmente, o que já não tolerava mais.


Ao lado de bandas como Legião Urbana, Titãs, Paralamas do Sucesso e Plebe Rude, o Ira! encabeçava a explosão do BRock — um movimento que não foi só musical, mas também político, social, estético. Mas diferente de muitas bandas da época, o Ira! carregava nas letras e na postura uma crueza mais próxima do punk inglês, da revolta concreta, do olhar duro para a realidade. Mudança de Comportamento é isso: a raiva elaborada em forma de arte.


São Paulo cinza, riffs cortantes


Com direção de Pena Schmidt e produção de Luiz Carlos Maluly, o disco foi gravado no Estúdio Nas Nuvens, no Rio, mas tem cheiro de asfalto paulistano. Edgard Scandurra e sua guitarra rasgam a base de um disco inteiro que pulsa com energia new wave, pós-punk, ska e garage rock. Nasi, com sua voz entre o debochado e o inflamado, já se firmava como um dos frontmen mais expressivos do rock brasileiro. As letras trazem ironia, crítica social, angústia existencial — e tudo isso embalado por melodias explosivas.


A faixa-título, “Mudança de Comportamento”, já diz tudo: é uma ruptura, uma provocação. “Núcleo Base” é um hino imediato, uma daquelas canções que, em menos de três minutos, resumem uma geração. “Meu amor, eu sinto muito, muito, mas vou indo” — a frase soa como uma despedida contida, quase burocrática, mas carregada de dor. Por trás da melodia seca e da voz firme de Nasi, há uma crítica direta ao alistamento militar obrigatório, uma experiência que marcou milhares de jovens nos anos 80.


O título da faixa faz referência a uma base militar, e a letra traduz o sentimento de quem é arrancado dos seus afetos e forçado a obedecer a uma ordem imposta pelo sistema. Era o retrato de uma juventude obrigada a amadurecer no susto, tentando se entender no meio do caos.


A crônica de uma juventude inquieta

Imagem: Reprodução
Imagem: Reprodução

Mudança de Comportamento não é um disco “bonito” — ele é sujo, direto, ríspido, como a cidade que o inspirou. E essa foi justamente sua força: em meio à abertura política e às transformações culturais do Brasil nos anos 80, o álbum funciona como uma crônica acelerada do tempo, um espelho que refletia não só os jovens da classe média urbana, mas também os ruídos da nova democracia.


É também o retrato de um país em transição, onde a música começava a ocupar o lugar da fala. E o Ira! falava alto. Gritava. Questionava. Apontava. Músicas como “Longe de Tudo”, “Saída” e “Tolices” iam além do entretenimento — eram códigos de pertencimento para quem cresceu nos corredores apertados dos prédios do centro, sob o ronco do transporte coletivo e as contradições de um país desigual.


Um disco que atravessa o tempo


Quase quatro décadas depois, esse disco ainda soa atual — talvez porque a urgência da juventude seja cíclica, ou porque as feridas que ele apontava ainda estejam abertas. Ou, ainda, porque a energia do Ira! segue viva e necessária num país onde a mudança continua sendo um sonho sempre adiado.



Hoje, o disco é peça fundamental da história da música brasileira. Um marco. Um documento sonoro de sua época — e, ao mesmo tempo, um grito que ainda ressoa. O impacto cultural vai além do rock: está na atitude, na linguagem, na estética de rua que influenciou gerações de bandas e artistas.



Em uma cena marcada por contrastes — entre o idealismo e a crueza, a poesia e a revolta — o Ira! se impôs com identidade própria. Mudança de Comportamento foi a primeira página de uma trajetória que não se curvou, que continuou desafiando o sistema, o mercado, e até a si mesma.


Talvez a maior força desse disco esteja justamente nisso: em ser um manifesto. Não apenas de comportamento, mas de som, de espírito, de resistência. E como todo bom manifesto, ele não envelhece. Ele permanece.

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