De Santos para o mundo, banda que teve como membro fundador o guitarrista e vocalista Johnny Hansen, falecido em 2017, é uma grande pioneira da cena alternativa no país.
Duas grandes bandas nacionais que despontaram no underground nacional a partir do início da segunda metade dos anos 80 tinham algo em comum, apesar das diferentes esferas sonoras de atuação. Os mineiros do Sepultura com seu death/thrash metal e os santistas do Harry com sua mescla de rock/eletrônica/industrial/pós-punk adotaram, desde o começo e de maneira um tanto ousada para a época (a explosão do chamado BRock e tudo o mais desse pacote), o inglês como o idioma de suas letras, visando, além de outros aspectos, o mercado gringo e uma maior aceitação por parte deste para os seus respectivos trabalhos fonográficos. Com isso, obviamente, a possibilidade concreta de uma agenda de shows lá fora. Dois grupos visionários e cada um, ao seu modo e estilo, se estabeleceu como importante referência histórica para aquela geração e as posteriores.
O Harry já tinha a sua contribuição inegável para a história da música alternativa aqui no país com três preciosos feitos discográficos: o EP 'Caos' (1987), estreia com as únicas canções em português e com a vocalista Denise Tesluki (ela deixaria o grupo pouco depois), que foi sucedida pelos álbuns 'Fairy Tales' (1988) e 'Vessel's Town' (1990). Além de Hansen (guitarra e vocal), integram a formação considerada clássica o tecladista e também produtor Roberto Verta, o baixista Richard K. Johnsson e o baterista César Di Giacomo.
Após 24 anos, a banda voltou a lançar um registro de estúdio, no qual revisita com uma roupagem mais rocker as canções do seu clássico 'Fairy Tales', considerado o melhor deles por muitos fãs e críticos, sendo também apontado como um dos grandes discos da história do rock nacional (o curioso é que Hansen demonstrava uma preferência maior pelo 'Vessel's Town'). O disco ainda conta com mais algumas faixas inéditas. A formação para este retorno (sem Verta) contou com o baixo de Lee Luthier e a guitarra de Marcelo Marreco. Johnsson assumiu os teclados.
Quem conhece a trajetória do Harry, sabe que o grupo santista é considerado precursor, aqui no Brasil, de uma sonoridade que ajudou a configurar, de certa forma, o cenário musical oitentista, com elementos eletrônicos e do synthpop, assim como as inspirações da EBM europeia e do industrial. Porém, Johnny Hansen e banda - de origem punk, bom lembrar - nunca esconderam as suas influências, digamos, mais ‘pesadas’. Ou seja, Alice Cooper e Sex Pistols são tão importantes para a construção da música do Harry quanto Kraftwerk e New Order, por exemplo.
O álbum 'Electric Fairy Tales', lançado no final do ano de 2014, foi mais do que uma grata surpresa para os fãs e admiradores do grupo. Um dos registros mais punk daquele ano, eu diria. Não apenas pelo som (afinal, trata-se de um “disco de guitarras”, que remete às influências do hard rock clássico setentista, do power pop e do pós-punk), mas também pela atitude, garra e coragem com que foi feito e lançado.
Contrariando uma tendência da moda tão em voga hoje em dia, que é justamente a de revisitar os sons típicos de estilos nos quais os caras são pioneiros no país, o Harry, ciente da importância histórica que possui e sem ficar lamentando pelas injustiças e incoerências provenientes da conjuntura relacionada à tríade mercado/indústria/mídia, paga tributo particular à sua própria relevância, fazendo isso da melhor maneira, com um álbum diferente, poderoso e revitalizante, em que os riffs e os solos de guitarra se sobressaem e chamam a atenção de modo especial. E, claro, devidamente amparados pelo vocal característico de Johnny Hansen e uma base/cozinha bem marcante. Destaque também para a ótima produção e a edição bem caprichada, com digipack, fotos e encarte, tudo muito bonito.
A importância, o pioneirismo e a influência do Harry jamais deverão ser ignorados e esquecidos, assim como a passagem notável de Johnny Hansen por este planeta. Aproveito para registrar aqui uma indignação de minha parte como leitor e apaixonado por música: na época do falecimento de Hansen, a edição nacional da revista Rolling Stone - ainda circulava nesse período, sendo que era o maior e mais importante veículo impresso deste segmento por aqui (fui assinante) - não publicou uma nota sequer, acredite.
'Fairy Tales' está disponível nas plataformas de streaming. Dá pra achar algumas coisas deles no YouTube, inclusive o documentário 'Harry - O Caos no Céu Cinza'. Quem se interessa por material no formato físico, pode fazer uma busca por aí pelos CDs e vinis. Em 2005, foi lançado um box com 3 CDs bem bacana e lindo chamado Taxidermy, que traz o EP e os dois primeiros álbuns, todos com faixas extras, incluindo gravações raras, versões demo e remix. É bom lembrar também que o Harry tem várias participações em coletâneas espalhadas por aí. Hansen deixou uma quantidade considerável de material gravado e em 2019 saiu 'The Dark Passenger' (disponível em streaming), álbum que traz a última participação dele. A banda voltou a usar o seu nome de origem, das raízes punk do começo, Harry And The Addicts.
Já são quatro anos sem a presença desse talento, grande músico (tocava vários instrumentos, por sinal), um verdadeiro batalhador incansável em vida. Um cara que faz muita falta e deixou grande saudade na música, para os amigos, fãs e também para aqueles tantos admiradores do Harry - assim como eu - que tinham algum contato com ele através das redes sociais.
Fotos abaixo tiradas do acervo pessoal de Marlons Silva
Veja o vídeo do documentário 'Harry- O Caos No Céu Cinza' abaixo:
Ouça 'Fairy Tales' no Spotify:
Sobre Marlons Silva
Sempre que pode ocupa seu tempo com o som de Jorge Ben Jor, Carole King e David Bowie, os livros do Irvine Welsh, os filmes do Ingmar Bergman e umas brincadeiras com a gatinha Lilly. Gosta muito também de pedalar. Acha que sem a música e a arte em geral, a vida seria um erro e também uma piada ruim muito sem graça. Enquanto aguarda ansiosamente uma temporada nova de Black Mirror, está sempre sendo apresentado a algo do universo dos animes pela filha Stella.
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