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Foto do escritorMarcello Almeida

Em Songs of a Lost World, o The Cure soa perversamente edificante em seu niilismo sobre a perda e o passar do tempo

“Para onde foi?”

Robert Smith, do The Cure, 2024.
Crédito: Sam Rockman


Longos 16 anos foi o tempo de gestação para o The Cure dar à luz/vida a Songs of a Lost World, um disco que abre um diálogo aberto, sincero e honesto sobre a vida, sobre o tempo, sobre a euforia de ser jovem e compreender que o tempo passa para todos. Os efeitos da velhice têm seus meios próprios para tocar cada alma.


Songs of a Lost World, apesar de conter apenas 8 faixas, não é rápido nem ligeiro; é um disco lento e paciente. Não que o Cure tenha deixado de ser punk e enérgico: toda a atmosfera gótica, sombria e saborosa da banda está presente em cada uma das faixas. Porém, o tempo passa, a velhice chega, e você não precisa digerir tudo com voracidade. Essa liberdade de Robert Smith e cia. de sentir a vida, as emoções e a tristeza com uma maturidade atingida pelos anos e experiências de vida soa realmente atraente e sedutora.


Talvez a vida seja assim, como uma canção de Songs...: conforme vamos envelhecendo, passamos a sentir a tristeza de outra maneira. Pessoas chegam, pessoas se vão, e cada uma delas deixa uma marca registrada em algum canto da alma. Passamos, então, a conversar com a tristeza em outras linguagens, pois já não ficamos tristes pelos mesmos motivos de quando éramos jovens. Boys Don’t Cry? A tristeza sempre foi um sentimento, um espírito genuíno, constante e necessário na vida.



Eles continuam brilhando feito uma blackstar, com shows de mais de três horas de duração; uma banda livre das pressões comuns nesse novo cenário da música, uma era de streaming em que tudo é consumido em segundos. O Cure retorna com um disco que não se preocupa em recuperar o tempo, se coloca em seu lugar e prefere seguir seu próprio ritmo, sem pressa, aproveitando cada momento. Isso é um puta tesão.


Aqui você não vai encontrar canções de amor demasiadamente bobas, estado que nos domina quando estamos apaixonados, como em The Lovecats ou na atmosfera estridente de Just Like Heaven. Songs of a Lost World soa agridocemente calmo, lento, cansado e poeticamente adulto. Um espelho da vida nesse finzinho de 2024: que presente melhor você poderia esperar além de um álbum novo do Cure?

 

Smith parece se apossar dos nossos sentimentos, emoções, dilacerando cada nota, cada fragmento desse pesar na alma, desse aperto sufocado que abraça o peito em tempos áridos, onde tudo acontece tão rápido e se vai tão rápido também.


Isso talvez explique o caminhar lentamente, respirar, soltar e deixar ir. Ao contrário de algumas bandas em 2024, o Cure de agora não precisa, nem tem a necessidade, de provar sua vitalidade e relevância. E por que deveriam? No fim, quem sabe, diante das eventualidades da vida, vamos adotando as características do Cure, já que Smith pode estar nos dizendo que não carrega nenhum tipo de preocupação com a morte, a vida, o envelhecer, as incertezas e dúvidas que surgem pelo caminho. E tudo isso, apontado nessas oito canções, de certa maneira, goteja diariamente em nossa vida à medida que envelhecemos e vamos ficando cada vez mais frágeis.


Songs Of A Lost World pode ser aquele presente inesperado que chega com a chuva que cai à noite e escorre pelo vidro da janela, e a noite tem tudo a ver com esse disco: uma sonoridade densa, sombria e genuinamente madura. A melancolia de “Alone, faixa que abre o álbum, é uma mostra de como o rock pode envelhecer perfeitamente mesmo sendo triste. Existe uma beleza em cada nota de tristeza que a vida compõe: “Este é o fim de cada música que cantamos / O fogo se transformou em cinzas, e as estrelas escureceram com lágrimas.” E está tudo bem em brindarmos nosso vazio com fragmentos amargos; o amor e a velhice também podem ser uma canção pop triste que sonha que o mundo não passa de um sonho.


A melancolia dessa faixa não apenas abre o álbum, mas também estabelece o tom para o que está por vir, refletindo a solidão que muitas vezes acompanha o envelhecimento. É uma canção que encapsula a beleza triste da vida, como se cada acorde fosse uma lembrança da juventude perdida.


“Para onde foi?”


Talvez não tenhamos a resposta para isso, mas lá no fundo, bem lá no fundo, temos a certeza daquele estranho conforto de que nosso pior medo se tornou realidade. Este é um disco de canções tristes e bonitas que come dolorosamente seu próprio rabo. A Fragile Thinge sua introdução climática ressoam na alma; essa é aquela canção de amor sombria sobre a solidão, sobre a falta e a saudade. É sobre o amor que começa intenso, quente, caloroso, e vai se desfazendo na árdua rotina, nos ressentimentos, nas mudanças de percurso, terminando em uma noite fria, gelada e vazia.


O amor pode ser essa coisa frágil, como canta Smith: “Não há nada que você possa fazer além de cantar, esse amor é uma coisa frágil.” O fato é que o Cure continua perversamente edificante em seu niilismo, e Robert Smith parece se transmutar em raiva, tristeza, ansiedade e dúvidas, algo no estilo devastador e honesto de Kafka em ‘A Metamorfose’.


Warsongé gótica, densa, climática — um grito angustiante ecoado no espaço sonoro entre guitarras e ruídos, até Smith entrar lamentando tudo aquilo que poderíamos ter sido juntos. Existe uma certa doçura na tristeza dessa canção, que combina e abre as portas para o rock noir lamentoso de Drone: Nodrone. Esse é, definitivamente, um disco do Cure: gótico, épico e, ainda assim, estranhamente minimalista.



Cada elemento carrega um peso — cada dedilhado no baixo, cada batida de bateria, o rasgar furioso das cordas da guitarra ou a nota silenciosa e desolada do piano parecem necessários, como se o vazio clamasse por cada som, enquanto tudo ecoa no silêncio inevitável do que sempre falta.


“I Can Never Say Goodbye” é uma canção sobre o peso da perda de um ente querido; fala abertamente e comoventemente sobre a estranha e dolorosa dificuldade de dizer adeus. A canção é dedicada ao irmão de Smith, que faleceu há alguns anos.



O sentimento que fica ao ouvir Songs Of A Lost World é de que fato somos pó deixados sozinhos sem nada no final de cada canção. Mas existe sempre uma luz em cada faixa dessa guiando para tranquilidade e paz. Sempre irá existir um coração na escuridão pronto para guia-lo de volta pra casa. Indiscutivelmente o trabalho mais pessoal do Cure. A mortalidade pode sussurrar ao redor, mas há tons coloridos escondidos na escuridão e flores que brotam entre as pedras frias do túmulo.

 

Songs Of A Lost World 

The Cure


Ano: 2024

Gênero: Indie Rock, Alternativo, Pós Punk

Ouça: "Alone", "Warsong", "I Can never Say Goodbye

Pra quem curte: Joy Division, Echo & the Bunnymen, The Smiths

Humor: Triste, Atmosférico, verdadeiro



 

NOTA DO CRÍTICO: 8,5

 

65 visualizações1 comentário

1 opmerking


Gast
há 12 horas

Esse sujeito é um poeta das almas pertubadas. Que resenha sensacional. íntima e de uma sensibilidade sem igual. Parabéns! Marcello Almeida. Lindo😍

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