Luck and Strange destaca-se por seu brilho e profundidade, mas não apenas por isso, ele possui uma qualidade especial que ressoa com a sofisticação e o talento de Gilmour.
Merecidamente reconhecido como um verdadeiro mestre da melodia, David Gilmour pode ser facilmente considerado uma espécie de paradoxo de si mesmo, sendo um virtuoso que navega perfeitamente entre o sutil e o grandioso. O guitarrista é amplamente aclamado por meio de um estilo que o torna um verdadeiro arquiteto das mais belas catedrais sônicas, além de existir dentro de uma dualidade onde o simples se torna grandioso e o grandioso se desmancha em simplicidade.
Aos 78 anos, David Gilmour continua provando que sua genialidade não está necessariamente ligada à virtuosidade técnica, mas sim, à sua habilidade em criar composições que tocam profundamente a alma de quem as ouve, onde cada nota e acorde são cuidadosamente escolhidos para criar uma experiência intensa e envolvente, onde cada detalhe, por menor que seja, contribui para criar uma atmosfera imersiva, capaz de transportar quem se deixar levar por sua música, para um lugar de introspecção e conexão emocional.
Luck and Strange, 5º disco de estúdio do músico, dentro de uma musicalidade delicada e característica, oferece um trabalho lírico que ajuda refletir sobre o que constitui uma experiência genuína em um mundo saturado de superficialidade, sobre a durabilidade das conexões interpessoais, sobre encontrar significado diante da mortalidade inevitável e da incerteza que permeia a existência humana entre outros, sempre dentro de uma exploração poética e multifacetada desses temas, oferecendo momentos de reflexão profunda e introspectiva. Novamente, quase todo as letras foram escritas por Polly Samson, esposa de Gilmour.
Black Cat, uma faixa instrumental de cerca de um minuto e meio, abre o álbum estabelecendo de imediato o clima característico da música de David. Com sua atmosfera introspectiva e arranjos sutis, a peça oferece uma pequena amostra do estilo sofisticado e inconfundível do guitarrista. Luck and Strange, o blues nunca foi um gosto oculto de David Gilmour, e faixas como essa evidenciam isso. Com apoio das teclas de Richard Wright, é muito bem construída por meio de várias “brincadeiras” de guitarra, enquanto entrega algumas reflexões sobre o tempo.
The Piper's Call é uma composição que Gilmour criou originalmente em um ukulele, dando à peça uma origem curiosa. Começa de forma acústica e suave, com acordes delicados que estabelecem uma sensação íntima, mas logo se transforma, crescendo de maneira gradual até culminar em um solo carregado de intensidade emocional. Novamente, é possível sentir uma atmosfera de blues. Uma música que atenta aos perigos que é o de cair nas promessas vazias de soluções rápidas
A Single Spark apresenta uma atmosfera mais melancólica em comparação com as faixas anteriores, mas essa tonalidade sombria encaixa-se perfeitamente com a temática lírica, que reflete sobre a fragilidade e a efemeridade da vida. Mais uma vez, um solo de guitarra brilhantemente executado se destaca, adicionando camadas de profundidade e realçando extremamente bem com o seu tom reflexivo.
Vita Brevis é um breve interlúdio atmosférico que funciona como uma ponte delicada para a faixa seguinte. Between Two Points traz uma colaboração familiar, com Romany Gilmour nos vocais e harpa, enquanto Gabriel Gilmour, seu irmão, contribui com o vocal de apoio. A voz suave e etérea de Romany, combinada com a atmosfera celestial da música, preserva a aura contemplativa da versão original dos The Montgolfier Brothers. No entanto, a inclusão da guitarra melódica e inconfundível de Gilmour adiciona uma nova camada emocional, enriquecendo a interpretação com sua marca clássica.
Dark and Velvet Nights apresenta uma letra adaptada de um poema que Polly Samson escreveu para Gilmour em um de seus aniversários de casamento. Liricamente, a canção explora a busca por um refúgio seguro na intimidade compartilhada, refletindo sobre como símbolos externos, como uma simples aliança, são frágeis e incapazes de capturar plenamente a profundidade de uma conexão verdadeira. Musicalmente, a faixa se destaca por sua sonoridade mais robusta e densa, contrastando com a delicadeza da mensagem, mas reforçando o peso emocional do tema.
Signs conduz o álbum de volta a uma sonoridade suave e serena, proporcionando um momento de tranquilidade após uma faixa muito mais intensa. A música é construída com arranjos delicados e envolventes, criando uma atmosfera de paz e contemplação que permeia toda a composição, enquanto é feita uma bonita reflexão sobre o amor, a perda e a luta para manter algo tão genuíno em um mundo cada vez mais caótico.
Scattered é a faixa do álbum que mais se assemelha ao som do Pink Floyd. Com belos arranjos de piano e orquestrações cuidadosas, a canção é enriquecida por um Gilmour em plena forma, tanto no violão quanto na guitarra. Na parte final, ele entrega um solo intenso, pesado e cheio de fervor. Liricamente, simbolismos abordam a luta humana contra a passagem inevitável do tempo, refletindo sobre a impotência diante desse processo cabal e incontrolável.
Yes, I Have Ghosts, lançada originalmente em 2020, entrou no disco como uma das duas faixas bônus. Tem a participação de Romany na harpa e vocais de apoio que casam perfeitamente com a voz de David. É marcada por um violão de timbre sofisticado e que adiciona um sutil toque folk, além de acentuar a profundidade emocional da música que fala sobre como o peso das experiências e relacionamentos passados pode persistir, moldando e assombrando nossas vidas atuais de maneira persistente.
"Lucky and Strange (Original Barn Jam)", a outra faixa bônus do álbum, tem uma duração de quatorze minutos, e como o título sugere, é uma jam improvisada da faixa título do disco. Gravada originalmente em 2007, a faixa conta com a participação de Richard Wright, trazendo novamente um toque nostálgico ao som. Embora a influência do blues seja evidente, a execução da faixa possui uma sonoridade que se inclina mais para um jazz moderno cheio de leveza. Enquanto é mostrado toda a habilidade dos músicos em criar um ambiente sonoro sofisticado e envolvente.
Em Luck and Strange, David Gilmour demonstra um equilíbrio sutil e sofisticado, que serve como um reflexo profundo de sua habilidade musical refinada e sua vasta experiência como artista. Cada faixa é uma prova da profunda destreza de Gilmour em combinar texturas sonoras complexas com uma sensibilidade melódica única. Do começo ao fim, o álbum revela uma maturidade musical impressionante, com arranjos muito bem elaborados e uma execução impecável.
Quando Gilmour afirmou que Luck and Strange é o seu melhor trabalho desde Dark Side of the Moon, é provável que ele estivesse considerando fatores além dos puramente musicais, incluindo aspectos pessoais e contextuais que influenciam sua visão artística. No entanto, se a questão for exclusivamente na dimensão musical, minha avaliação diverge dessa declaração. Porém, Luck and Strange destaca-se por seu brilho e profundidade, mas não apenas por isso, ele possui uma qualidade especial que ressoa com a sofisticação e o talento de Gilmour. Isso faz com que a partir de agora, eu o enxergue como seu melhor disco solo.
Luck and Strange
David Gilmour
Ano: 2024
Gênero: Art Rock, Musica Ambient
Ouça: "Luck and Strange", " Between Two Points", "Scattered"
Pra quem curte: Richard Wright, Roger Hodgson, Alan Parsons
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