Sua obra, como as rosas que ele cantava, continua a exalar um perfume inconfundível, deixando sua marca indelével na história e na cultura do Brasil e do mundo.
Angenor de Oliveira, mais conhecido como Cartola, é uma das figuras mais icônicas da música brasileira. Nascido em 11 de outubro de 1908, no bairro do Catete, no Rio de Janeiro, e criado na comunidade do Morro da Mangueira, Cartola se tornou sinônimo de samba e poesia. Seu legado transcende gerações, revelando-se um elo entre a simplicidade do morro e a sofisticação da música popular brasileira. Cartola não foi apenas um compositor de letras memoráveis e melodias sublimes, mas também um arquétipo do artista brasileiro que transforma adversidades em beleza. Fundador da Estação Primeira de Mangueira, ele ajudou a moldar o samba como a voz da cultura popular carioca e um dos principais símbolos de identidade nacional.
A poesia de Cartola é marcada por um lirismo profundo, uma melancolia doce e uma rara habilidade de traduzir emoções universais em versos simples e poderosos. Em músicas como “As Rosas Não Falam”, ele expressa uma delicadeza ímpar: “Queixo-me às rosas, que bobagem, as rosas não falam / Simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti.” Esses versos, que falam de amor, saudade e introspecção, revelam um talento para capturar a essência do que é ser humano. Cartola era um mestre em transformar a dor e a alegria da vida cotidiana em arte. Ele traduzia a experiência de milhares de brasileiros em canções que, apesar de nascidas no morro, conquistaram palcos do mundo inteiro.
O impacto cultural de Cartola é imensurável em palavras, é preciso sentir cada linha, cada verso, cada melodia. Suas composições não apenas ajudaram a consolidar o samba como gênero musical, mas também o elevaram ao patamar de arte refinada, digna de apreciação intelectual e reconhecimento internacional. Composições como “O Mundo é um Moinho” revelam sua habilidade de navegar entre o universo poético e o social, aconselhando jovens com a sabedoria de quem observou a vida de perto: “Preste atenção, o mundo é um moinho / Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho.” Essa capacidade de combinar a introspecção poética com reflexões sobre a realidade social tornou sua obra única e universal.
Cartola influenciou gerações de artistas. Seu legado pode ser observado na música de grandes nomes como Paulinho da Viola, Beth Carvalho, Chico Buarque e Marisa Monte. A admiração de músicos e intelectuais por seu trabalho reflete o reconhecimento de sua importância não apenas como compositor, mas como um emblema da cultura brasileira. Suas parcerias com outros gigantes do samba, como Nelson Cavaquinho e Noel Rosa, contribuíram para a formação de um cancioneiro popular que continua vivo até hoje. Além disso, sua influência pode ser sentida na forma como o samba se entrelaça com outros gêneros, como o MPB e o jazz, ganhando novos contornos e perpetuando sua relevância.
A história de vida de Cartola também é emblemática. Durante anos, ele viveu no anonimato, trabalhando como pedreiro e lavador de carros. Foi redescoberto apenas na década de 1950 por Sérgio Porto, que o apresentou ao público de classe média e alta do Rio de Janeiro. Apesar das dificuldades, Cartola nunca abandonou a música, e quando finalmente gravou seu primeiro disco, em 1974, já estava com 65 anos. Suas canções, até então restritas ao universo do samba de morro, ganharam o mundo, provando que talento verdadeiro não conhece barreiras de tempo ou espaço.
A beleza da simplicidade
Além de suas músicas, Cartola deixou sua marca em aspectos visuais que eternizam sua obra. A capa de seu segundo disco, “Cartola II” (1976), é um ícone da música brasileira. Na imagem, Cartola aparece ao lado de sua esposa, Dona Zica, em um ambiente simples, quase doméstico, com um vasinho de planta no centro da composição. Essa capa sintetiza o espírito do samba e de sua obra: a conexão com as origens, a valorização do cotidiano e a beleza que surge da simplicidade.
É uma representação visual de tudo o que Cartola simbolizava – um artista que, apesar de suas circunstâncias humildes, conseguiu transformar a realidade em arte. O disco, que contém a inesquecível “Preciso Me Encontrar”, é um marco da música brasileira, tanto pela força de suas composições quanto pela aura histórica que a capa evoca.
Um amor que nasceu entre um Fla-Flu
A relação entre a música e o futebol sempre foi um traço marcante da cultura brasileira, e na história de Cartola e Dona Zica, essa conexão ganha contornos ainda mais especiais. Apesar de compartilharem a paixão pela música e pelo samba, o casal torcia para times diferentes, o que adicionava uma dose de rivalidade saudável à relação. Cartola era um apaixonado torcedor do Fluminense, enquanto Dona Zica dedicava seu coração ao Flamengo.
Essa divergência futebolística nunca foi um motivo de discórdia, mas sim uma representação simbólica da união entre diferentes paixões. A convivência harmoniosa de dois grandes amores por times rivais era um reflexo de como o samba e o futebol, dois dos pilares da identidade cultural brasileira, podem caminhar juntos, mesmo em suas diferenças.
Cartola, como tricolor, incorporava em sua personalidade o estilo elegante e nostálgico associado ao clube. Já Dona Zica, como rubro-negra, trazia a força e a intensidade típicas da torcida do Flamengo. Essa dualidade se refletia na dinâmica do casal e até mesmo no Zicartola, que se tornava um espaço onde a paixão pelo samba unia flamenguistas, tricolores e torcedores de todos os times. A música, nesse contexto, era o elemento que transcendia rivalidades, transformando o amor pelo esporte e pela arte em algo maior.
Um sambista, poético, romântico, que cantou para a atemporalidade
Um dos aspectos mais marcantes da obra de Cartola é a sua atemporalidade. As emoções que ele expressa em suas músicas – o amor, a saudade, a dor, a esperança – continuam a ressoar profundamente nos corações de quem as ouve. Músicas como “Preciso Me Encontrar”, imortalizada por Candeia e outros intérpretes, refletem o desejo humano por liberdade e autodescoberta: “Deixe-me ir, preciso andar / Vou por aí a procurar / Rir pra não chorar.” Seus versos, ao mesmo tempo simples e profundos, encontram eco em diferentes gerações, reafirmando sua relevância cultural.
Cartola não foi apenas um compositor, mas um cronista de seu tempo. Ele capturou com precisão as nuances da vida no morro, mas também ofereceu uma visão universal do que é ser humano. Sua obra é um testemunho da força da cultura popular e da capacidade do samba de transcender barreiras sociais, culturais e geográficas. Ao longo de sua vida, ele demonstrou que o talento e a criatividade podem florescer nos lugares mais improváveis, tornando-se um símbolo de resistência e superação.
Hoje, mais de um século após seu nascimento, Cartola continua a ser uma referência na música brasileira. Suas canções são constantemente reinterpretadas, redescobertas e celebradas por novos públicos. Ele não é apenas um ícone do samba, mas um dos maiores artistas que o Brasil já produziu, ao lado de nomes como Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Cartola é eterno porque, em sua simplicidade, ele conseguiu capturar a complexidade da alma brasileira. Sua obra, como as rosas que ele cantava, continua a exalar um perfume inconfundível, deixando sua marca indelével na história e na cultura do Brasil e do mundo.
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