Charcoal Grace acabou ficando o álbum mais profundo e sentimental da banda.
Os australianos da Caligula’s Horse chegam em seu 6º disco surpreendendo antes de mais nada, na sua formação, afinal, apesar de mudanças não ser uma novidade quando o assunto é o grupo, desta vez, após a saída do guitarrista, Adrian Goleby, eles decidiram seguir como um quarteto, com Jim Grey nos vocais, Sam Vallen na guitarra, Dale Prinsse no baixo e Josh Griffin na bateria, dispensando assim, a guitarra rítmica que marcou presença em todos os outros cinco álbuns da banda,
Apesar de só lançado no fim de janeiro de 2024, Charcoal Grace veio sendo confeccionado desde 2020, pois após o lançamento do disco anterior, Rise Radiant, e por conta da pandemia, a banda ficou impedida de sair em turnê e divulgar o seu até então mais novo trabalho, portanto, decidiram usar esse tempo para compor. Enquanto isso e devido as circunstância do momento, Charcoal Grace acabou ficando o álbum mais profundo e sentimental da banda, além de entregar uma variedade incrível de musicalidades obscuras e luminosas sempre muito bem conduzidas sob uma das vozes que atualmente pode ser considerada das mais marcantes do metal progressivo. Vale destacar também, que o disco faz parte daquelas obras que suas peças soltas talvez não cause nenhum tipo de impacto ou empolgue o ouvinte, porém, quando o avaliamos como um todo e lidamos com a variação de sentimentos empregados nas canções, tudo pode mudar de figura.
Seria exagero dizer que Charcoal Grace é uma espécie de escuta soturna, como se estivéssemos ouvindo o grito daqueles que se viam desesperados em um isolamento repentino? Eu acho que não, muito pelo contrário, sinto no álbum uma carga melancólica e tempestuosa que ilustra muito bem boa parte do tempo em que a banda esteve compondo o disco, e faz mais sentido ainda quando pegamos as palavras do próprio vocalista do grupo, Jim Grey, “Charcoal Grace nasce da desesperança estática que a pandemia impôs à banda, na verdade, a grande parte do mundo nos últimos anos. É um álbum que avalia as experiências e resultados deste tempo, em última análise, para a catarse – avançando em direção a um futuro mais esperançoso depois de lidar com o maior revés que a banda já experimentou.”
“The World Breathes with Me”, com os seus 10 minutos, é a faixa de abertura, que por meio de uma guitarra sutil já mostra qual o propósito harmonioso que a banda quer seguir durante a maior parte do disco. A bateria vai preparando a música até o momento que ela explode em um peso característico do grupo - ainda que soe um pouco mais suave do que eles costumam ser. Aqui há uma excelente entrega em uma música que se encontra em mudança constante e grande desenvolvimento dentro de uma paleta de cores, sendo desde as mais sombrias, até outras luminosas, porém, e o mais importante, é uma peça sempre bem orientada. “Golem” é a música mais pesada, direta e reta do álbum, têm excelentes riff de guitarra e uma seção rítmica muito dinâmica, enquanto que os vocais são mais polidos nos versos e enérgicos nos refrãos, inclusive, falando nos refrãos, eles tem uma grande carga emotiva que faz ter vontade de cantar alto.
A faixa título é dividida em quatro partes, sendo cada uma delas representada por uma música, totalizando cerca de 24 minutos de um épico sensacional. Independentemente do grau de proximidade com a banda, certamente este vai ser o momento do disco que o ouvinte mais vai demorar para entender tudo o que acontece para poder avaliar de forma justa. “Charcoal Grace I: Prey”, com quase 8 minutos, é a maior das partes. Após alguns arpejos de guitarra, a banda entra criando uma atmosfera sólida e quase orquestral, até silenciar, e os primeiros vocais melódicos de Jim surgirem sob uma harmonia triste. A peça possui um forte equilíbrio instrumental, conseguindo de certa forma, até ser agressiva - dentro do contexto do disco - em algumas partes e suave em outras, além de ter um refrão cativante.
“Charcoal Grace II: A World Without” é a segunda parte, começa com os mesmos arpejos da faixa anterior, mas agora feitos no violão, enquanto que algumas notas pontuais de guitarra e bateria vão criando o clima para então todos os instrumentos entrarem juntos de uma forma enérgica, porém, tudo fica sereno e Jim aparece com os primeiros vocais da peça e que soam quase sussurrante. É daqueles tipo de música que começa sem demonstrar muita coisa e vai crescendo aos poucos, tendo como seu ápice um solo de guitarra que explode e eleva a música para um outro nível.
"Charcoal Grace III: Vigil" é a menor parte e também o momento mais suave entre as quatro. Começa por meio de violão, voz e algumas notas suaves da baixo, dando até a impressão que em algum momento vai haver alguma explosão com a entrada da bateria, mas não, sua paisagem sonora segue dentro de uma constante sutil e emotiva, tanto instrumentalmente, quanto em relação aos vocais de Grey. “Charcoal Grace IV: Give Me Hell” é a quarta e última parte do épico, além de também ser o seu momento mais sombrio e até mesmo fúnebre em determinados pontos. A seção rítmica nunca esteve tão pulsante, a guitarra possui uma enorme força - que inclui um solo matador - e os vocais são muito bem acentuados dentro de uma raiva, mesmo quando parece que vai entregar uma linha plácida.
As quatro partes de “Charcoal Grace” tem como fio condutor a convivência - ou a falta dela - de uma criança com o seu pai. Para ficar mais claro sobre o tipo de narrativa que é utilizada pela banda, se você tem uma boa convivência com a música do Marillion em seus trabalhos mais conceituais, a maneira como a história se desenvolve aqui tem uma certa semelhança com a banda, sendo que emocionalmente é algo como em Brave. Interessante também, é perceber o quão dentro de suas variações a música é condizente com a narrativa, explorando ao máximo os sentimento causados à criança em cada um dos capítulos, criando assim, o ápice do disco.
Após um ato tão poderoso e profundo, nada melhor do que uma peça como “Sails" para que o ouvinte respire ao som de algo mais simples. “Sails” é uma das músicas mais lindas que a banda já compôs, uma balada belíssima, muito dramática e cheia de melancolia, além de possuir vocais formidáveis. Talvez o momento mais emocionante do disco. “ The Stormchaser” é uma faixa bem equilibrada em seus humores e que define perfeitamente o que é o álbum - talvez por isso foi lançada como single -, além de possuir várias linhas vocais excelentes. Como acontece basicamente em todo o disco, mais uma vez, a banda executa uma música em perfeito concorde para confeccionar uma peça cintilante.
“Mute” é a faixa que encerra o disco, um final que não poderia ser melhor. Começa por meio de uma demonstração de Jim que justifica porque ele é um dos melhores vocalistas do metal progressivo, mas logo toda a banda entra em uma sonoridade enérgica e orquestral - inclusive, o responsável pelas teclas no disco não é creditado. No decorrer dos seus 12 minutos, a banda passeia por uma montanha russa de diferentes vibrações e nuances, entregando momentos pesados, suaves e também reflexivos, tudo dentro de um desenvolvimento extremamente acessível. Difícil destacar algo em uma música tão homogênea, mas o uso de flauta me surpreendeu, pois acabou me remetendo ao Genesis em sua era Peter Gabriel, sendo isso, o tipo de coisa que eu jamais imaginei que fosse acontecer durante uma escuta do Caligula’s Horse.
Charcoal Grace certamente possui algumas das melhores músicas de todo o catálogo da banda, mostrando assim, que mesmo pertencendo a um nicho onde inovações ou discos surpreendentes hoje em dia são difíceis de acontecer - caso do metal progressivo -, eles possuem a capacidade de entregar peças com bastante frescor. Um álbum tocante, de músicas sagazes, bem construídas, muito intensas e verdadeiramente progressivas.
Charcoal Grace
Caligula’s Horse
Ano: 2024
Gênero: Metal Progressivo
Ouça: “The World Breathes with Me”, “Charcoal Grace II: A World Without”, “Mute”
Humor: Intenso, Profundo, Obscuro
Pra quem curte: Karnivool, Periphery, Tool
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