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As Bicicletas de Belleville: Uma poética jornada pelas questões do mundo contemporâneo

Uma reflexão visual sobre alienação, consumismo e a busca por propósito

As Bicicletas de Belleville
Imagem: Divulgação


Existem obras que sobressaem aos efeitos do tempo e conseguem permanecer atuais, cristalinas e de grande efeito emocional e espiritual. Mesmo lançado em 2003, As Bicicletas de Belleville continua poderoso, mantendo seu brilho e magia até os dias de hoje. O diretor e roteirista Sylvain Chomet provou ser um ótimo contador de histórias visuais. Essa é daquelas animações em que você, espectador, mal sentirá falta dos diálogos. Os gráficos e a beleza visual melancólica deste filme são exuberantes e agradam os olhos.


Diante da beleza expressa na tela, a sensação e o sentimento que floresce no coração, junto à nostalgia e à atmosfera agridoce, são como se o velho e o novo colidissem e se quebrassem, espalhando fragmentos e peças que se encaixam perfeitamente nessa poética narrativa, repleta de personagens peculiares e críticas sociais nas entrelinhas.


O grande elo de As Bicicletas de Belleville é a busca pelo sentido da vida através da jornada de Champion e sua avó, Madame Souza. Champion é um jovem que demonstra profunda apatia pela vida, encontrando no ciclismo sua verdadeira paixão. Nesse ponto, o filme parece usar a metáfora para desenvolver essa árdua busca individual por um propósito. A paixão de Champion pelo ciclismo logo dá espaço para a obsessão, sugerindo que o sentido da vida pode muito bem ser construído pelo indivíduo, como descreveu Jean-Paul Sartre ao afirmar que "existir precede a essência", onde o ser humano atribui valor às suas ações e escolhas.



Com o uso preciso e certeiro das cores, fotografia e cenas que são pura poesia, capturando as angústias, anseios, vontades e medos dos personagens, Sylvain constrói de maneira perturbadora, sombria e melancólica seu conceito e visão de alienação. Isso é visível nas ações de Champion, que, ao perseguir seu sonho, se afasta do mundo, vivendo uma rotina repetitiva e mecânica, praticamente desprovida de vida. Algo que remete à velha filosofia do capitalismo: trabalhos com longas jornadas exaustivas, obsessão por fama, sucesso e dinheiro, características que moldam e movem uma sociedade capitalista.



Longe de ser uma animação para crianças, ‘As Bicicletas de Belleville’ pode ser um verdadeiro “soco na boca do estômago”, uma ácida e feroz crítica ao consumismo e à globalização. Conforme a trama avança, a animação nos convida a enxergar a clara representação das desigualdades sociais e econômicas. A cidade fictícia de Belleville, onde grande parte da história se desenrola, é como um espelho de metrópoles como Nova York e Paris, amplamente dominadas por uma cultura de massas que sufoca a maioria das pessoas.


A paixão e o divertimento de uma competição ciclística acabam se tornando uma alegoria para a exploração física e emocional das classes trabalhadoras, que são usadas e exploradas até o esgotamento, enquanto a elite se diverte e observa passivamente.


Mesmo anos depois do seu lançamento, é praticamente impossível assistir a essa obra-prima da cultura pop e não ficar maravilhado e boquiaberto com seus gráficos e toda a genialidade de Chomet, que soube, primorosamente, conduzir sua narrativa para um desfecho satisfatório. A jornada de Champion não deixa de pisar em terrenos áridos, hostis e de resistência. O filme expõe sua ideia sobre a transformação do lazer em mercadoria, onde até mesmo nossos passatempos pessoais acabam sendo manipulados pelo sistema. O sonho e a paixão de Champion pelo ciclismo, que era para ser algo libertador e prazeroso, se transformam em um meio de exploração e controle.


Já a resistência pode ser vista na humanidade, simplicidade e bondade de Madame Souza e seu fabuloso cão, Bruno. Ambos se tornam um marco, um brilho e símbolos de um anti-herói, lutando contra um sistema opressor, sem grandes habilidades ou poderes, movidos apenas pelo amor e pela lealdade. Quando estamos diante dos dois na tela, o filme transmite aquele sentimento revigorante de tentar trazer de volta os belos traços de afinidade, laços afetivos e emoções que acabaram sendo corroídos pela rotina, exploração e alienação.


Você pode sentir um gosto amargo ao degustar essa jornada cinematográfica criativa e inteligente, uma obra necessária para compreender nossos dias e refletir sobre nossa ideologia de vida., um filme que diz muito sobre nós mesmos. As Bicicletas de Belleville é, ao mesmo tempo, uma deliciosa e triste paisagem poética sobre a modernidade e os avanços que vieram junto com ela, trazendo consigo essa prisão sem grades, que passa a ilusória sensação de liberdade, quando, na verdade, você está diante da alienação, das diferenças e desigualdades de um mundo que te explora cada vez mais, enquanto você luta diariamente para buscar um sentido para a vida.


Essa animação, aparentemente simples, oferece uma profunda jornada que dialoga com as principais questões do mundo contemporâneo.

 

As Bicicletas de Belleville

Les Triplettes de Belleville


Ano: 2003

Gênero: Animação, Comédia

Direção: Sylvain Chomet

Roteiro: Sylvain Chomet

Elenco: Béatrice Bonifassi, Bernard Cogniaux, Jean-Claude Donda

País: Bélgica, Canadá, França

Duração: 81 min


 

NOTA DO CRÍTICO: 8,5

 

Trailer:




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