'Blackstar', no mínimo, é uma carta aberta de despedida ao mundo, escrita com tamanha genialidade e sensibilidade.
David Bowie é aquela figura emblemática, ícone da música pop, que apesar de não estar mais entre nós, sua obra e legado vive eternamente nos corações aficionados por cultura pop. Pense em quantas vidas Bowie não tocou e mudou com seu canto e magistralidade de compor canções que assumem o papel muito mais do que meras músicas, muitas delas possuem o poder de transformar indivíduos e mudar o fluxo dos acontecimentos no mundo.
Ele pode ser considerado o último Lázaro da música: assim como foi aquela figura bíblica convidada por Jesus a emergir de sua tumba após quatro dias, Bowie colocou muitos de seus eus para descansar ao longo do último meio século, apenas para ressurgir com um diferente disfarce, um novo símbolo, ou um novo artista para contar todas as suas experiências e visões de mundo.
Bowie era ciente de todos esses fatos e acontecimentos. A imagem que fica é de que ele sempre terá que responder por toda sua obra-prima dos anos 1970, quando simplesmente impôs várias tendências e revolucionou o cenário musical, fazendo parecer que a reinvenção era algo tão comum e simples de fazer como acordar pela manhã. Em vez de ignorar os anos 80/90, ele explora-os de uma maneira bizarra, zombando das turnês de sucesso, nostalgia e regurgitação sem conteúdo intelectual.
Após anos de hiato e silêncio, ele ressurgiu com uma obra emblemática, fazendo escola de como se fazer música nos anos 2000, 'The Next Day' (2013), colocou o camaleão nos holofotes da música novamente. Um disco de canções inarráveis com um contexto totalmente misterioso e interpretativo. Seu 25º chegou ao mundo no dia 8 de janeiro de 2016, 'Blackstar', uma obra enigmática, cheia de metáforas e mensagens escondidas nas entrelinhas de sete faixas que exploram com magistralidade o processo criativo do músico. Um disco preto no branco, estampando uma icônica estrela preta em sua capa branca, tantos sinais camuflados que viriam átona no dia 10 de janeiro de 2016.
'Blackstar', no mínimo, é uma carta aberta de despedida ao mundo, escrita com tamanha genialidade e sensibilidade de um artista que viu a vida com outros olhos. Ao lado do fiel escudeiro Tony Visconti, Bowie tece suas teias de aranha criativas para entorpecer o ouvinte ao longo de pouco mais de 41 minutos.
As canções desse disco navegam agridocemente pelo jazz eletroacústico, enaltecendo o lirismo e emoções inescrutáveis de um estranho que caiu na terra em 1976, corrompido, bêbado e imortal. Figura imortalizada no filme 'O Homem Que Caiu Na Terra', de Nicolas Roeg. E se você ouvir atentamente 'Blackstar' vai encontrar paralelos interessantes entre as duas obras. Preste atenção nos versos misteriosos da canção "Lazarus". "Olhe aqui pra cima/Estou no céu/Tenho cicatrizes que não podem ser vistas/Tenho o drama que não pode ser roubado... Você sabe/Estarei livre/Igual aquele pássaro-azul."
Voltamos para faixa-título, que abre esse fatídico disco que se tornou um marco na carreira de Bowie, muito por suas mensagens que só foram ser enxergadas depois de sua morte. "Blackstar" é uma viagem cósmica que estimula os mais diversos sentimentos e emoções. Uma canção que transita por diversas camadas e atmosferas ao longo dos seus quase 10 minutos de duração. Uma faixa que passa a ideia de que o mundo está diante de um futuro aterrorizante. Isso em 2016, pode ter sido, sim, um presságio do que enfrentaríamos anos seguintes. Desgoverno, pandemia, ataques terroristas..., porém, a estrela estampada na capa de 'Black Star' volta a brilhar e acenar para um futuro onde a esperança toma a frente.
"Tis A Pity She Was A Whore" esbanja um instrumental fora de série. Sons metálicos que se fundem a uma harmonização espetacular. A voz de Bowie também denota espasmos de pura angústia, algo que combina agridocemente com a atmosfera e contexto do disco. 'Blackstar', com tudo, parece não se preocupar com o mercado e a indústria musical. Um álbum de canções instigantes, estranhas (no bom sentido) e focado mais naquilo que Bowie quer dizer ao mundo e isso no final se torna brilhante e nostálgico. Para ser sincero, o trabalho já nasceu com esse espírito melancólico emanado em suas raízes, a prova disso viria dias depois.
Apesar da inebriante combinação de jazz, malícia e história, 'Blackstar' fica completo com o seu final, composto por duas canções, que equilibram as feridas dessa vida e transformam aqueles dias de chuvas em tempestades onde a água que escorre é salgada e amarga, representando os dissabores da vida. São baladas essencialmente clássicas de David Bowie, nas quais ele deixa sua máscara cair apenas o suficiente para podermos ver as marcas da pele por trás dela.
"Dollar Days" começa com uma melodia triste e desolada, que logo abre caminho para voz bucólica de Bowie, que chega a arrepiar quando a canção explode em um refrão incrível que revela detalhes sobre as confissões de uma alma atormentada e inquieta. "Estou morrendo de vontade de empurrar suas costas contra o grão e enganá-los de novo e de novo", canta ele na canção. Então, somos apresentados a linda e profunda "I Can't Give Everything Away", daquelas canções difíceis de transmitir para o papel os sentimentos e emoções que ela provoca. O resultado geral é intrigante e atraente, características que certamente se aplicam a 'Blackstar'. É um disco abundante, profundo e estranho que parece Bowie seguindo em frente de maneira inquieta, sempre com os olhos postos à frente - posição em que, historicamente, sempre produziu suas melhores músicas.
Essa imortalidade dolorosa não é uma farsa: Bowie viverá muito depois que o homem morrer.
Blackstar
David Bowie
Lançamento: 8 de janeiro de 2016
Gênero: Glam Rock, Jazz, Rock Contemporâneo
Ouça: Todas as faixas
Humor: Hipnótico, Misterioso, Elegante, Apaixonado
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