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A atemporalidade de Beth Gibbons em tecer profundas reflexões sobre a vida e a morte no bonito 'Lives Outgrown'

É um disco para se ouvir com capricho e dedicação, sem pressa, feito para ser degustado pouco a pouco

Beth Gibbons
Beth Gibbons, 2024. CRÉDITO: Netti Habel


Se existe algo que permeia a carreira de Beth Gibbons desde o início com o Portishead, é a atemporalidade, característica marcante em sua voz, dosada por uma profundidade sensual e, ao mesmo tempo, angustiante. Transmitindo com toda a magistralidade os sentimentos em sua música, é como se ela evocasse, com naturalidade, ícones como Billie Holiday para transbordar uma sabedoria que transcende sua idade.


Ela sempre demonstrou estar além do seu tempo, caminhando no seu ritmo próprio e único. Foi assim com o Portishead e em suas raras aparições, como o projeto 'Out of Season' de 2002, com Paul Webb, e sua colaboração com a Orquestra Sinfônica da Rádio Nacional Polonesa. Gibbons é aquela artista que aparece de tempos em tempos como se fosse um ótimo presságio sonoro, trazendo sempre verdades e honestidade. Sua música é tão profunda que acaba sendo algo bem maior do que uma canção. Beth canta sobre a vida e laços que são construídos pelo caminho, amores, dores, angústias, perdas e envelhecimento.



E quando falamos sobre o tempo em sua carreira e toda essa abordagem deliberada que ela carrega consigo e sem pressa, chegamos no cerne de 'Lives Outgrown', sua tão aguardada estreia solo, um trabalho delicado que foi ganhando forma ao longo de mais de uma década. Aqui, ela contou com a parceria do baterista Lee Harris, ex-integrante do Talk Talk, e com a talentosa mão do produtor James Ford.


O disco nos entrega dez faixas incríveis e bem harmonizadas que funcionam em sintonia, e cada uma delas se destaca através de meticulosas camadas que vão entregando pouco a pouco os elementos. Seja os doces acordes dos instrumentos de cordas, que se revelam em doses suaves, como se tudo tivesse sido planejado e trabalhado com muito cuidado e muito poder poético para contrastar com a urgência da contextualização central da obra: a relação com a morte. E a outra parte fica por conta da voz de Gibbons, que ecoa na alma do ouvinte. Esse equilíbrio é algo feito de maneira primorosa no álbum.


Em sua poderosa estreia, Beth elabora um roteiro reflexivo sobre a inevitabilidade da morte e a desesperança na vida, temas que foram acentuados por perdas de entes queridos e amigos nos últimos anos, algo que foi totalmente exacerbado pela pandemia do Covid-19 e pelas várias mudanças pessoais e políticas. Toda essa densidade e profundidade melancólica apresentada em 'Lives Outgrown' emula o aclamado 'Dummy' (1994) do Portishead.


Em faixas primorosas como "Burden of Life", Gibbons expressa angústias existenciais com um poder lírico devastador e dilacerante, criando uma atmosfera experimentalista e realista. O poder imersivo desse disco é algo surreal: uma faixa vai puxando a outras, enquanto "Floating On A Moment" destaca a riqueza de seus versos e o poder metódico dos arranjos percussivos. A alternância entre incerteza e resiliência permeia o álbum, evidenciando a capacidade de Gibbons de capturar a transitoriedade da vida em sua música.



Algo que pode incomodar algumas pessoas é o ritmo lento do disco, desde o início com a faixa introdutória "Tell Me Who You Are Today". O trabalho segue sem pressa nas águas da lentidão. O que alguns podem ver como ponto fraco de 'Lives Outgrown', na verdade, é algo arranjado e bem articulado para uma reflexão profunda sobre a vida e a morte. O tempo lento aqui faz parte do enredo e proposta da obra. É um disco para se ouvir com capricho e dedicação, sem pressa, feito para ser degustado pouco a pouco.



Em muitos momentos do disco, você vai sentir aquela sensação desconfortante surgindo, te jogando palavras sobre o desfecho da vida, e são nesses momentos que crescem explosões melódicas fabulosas, como 'Reaching Out' ou a densa 'Rewind', que lembra as batidas sombrias de 'There There' do Radiohead. Reflexões sobre luto e morte voltam à tona em composições repletas de reviravoltas, como a deslumbrante 'Floating on a Moment', que entrega os versos: “Tudo indo para lugar nenhum. Tudo indo, não se engane.



'Lives Outgrown' é um disco desafiador, bonito e reflexivo, em sua totalidade emocionante. Beth Gibbons subverte suas raízes em um novo trabalho necessário e vital, que levou um longo tempo para nascer, mas chega em um momento da vida totalmente oportuno. São canções que convidam o ouvinte a uma imersão na mente de Gibbons, refletindo sobre a fragilidade da existência, com uma consistência que, embora densa, evidencia a habilidade única da compositora em transformar sofrimento em arte.

 

Lives Outgrown

Beth Gibbons


Ano: 2024

Gênero: Pop Rock, Folk, Indie

Ouça: "Burden of Life", "Floating On A Moment"

Pra quem curte: PJ Harvey, Portishead

Humor: Atmosférico, Enigmático, Hipnótico



 

NOTA DO CRÍTICO: 8,5

 


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